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Por que mesmo com medidas protetivas mulheres são mortas por seus ex-companheiros?

Laura Suprani* O GLOBO

 

RIO - Entre os mecanismos previstos pela Lei Maria da Penha para a proteção de mulheres vítimas de violência doméstica e de gênero estão as medidas protetivas de urgência. De acordo com a legislação, após uma denúncia, a Justiça poderá determinar o afastamento do agressor de casa e a restrição do contato com a mulher agredida e seus familiares. O descumprimento dessas medidas é crime e pode levar à prisão. Mas não são poucos os casos de mulheres assassinadas por seus ex-companheiros, apesar de terem medidas protetivas. Por que isso acontece?

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— A estrutura patriarcal, que centraliza o poder na figura do homem em detrimento do reconhecimento do lugar de poder da mulher na sociedade, chancela a prática de múltiplas violências. É como se houvesse uma permissão social para que a mulher fosse violada, agredida, subjugada, uma espécie de cultura do ódio à mulher — explica Izabella Borges, advogada criminal.

Em todo o país, os números de agressões contra a mulher cresceram durante a pandemia. Os canais de atendimento mantidos pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, Ligue 180 e Disque 100, receberam uma denúncia a cada cinco minutos em 2020. A 14ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra um aumento de 1,9% dos feminicídios no primeiro semestre de 2020, em comparação com o mesmo período de 2019. O Conselho Nacional de Justiça divulgou que 403 mil mulheres pediram algum tipo de proteção contra os seus ex-companheiros em 2020. Entre os motivos para os pedidos de medidas protetivas estavam agressões físicas, verbais e tentativas de feminicídio.

— Muitas vezes, esse homem pratica essa violência para exercer seu poder patriarcal. É um recado que ele passa para a sociedade e para a mulher. Nesse contexto, não é a determinação de um juiz que vai interferir na vontade desse homem de exercer esse poder. Muitos são presos, mas ameaçam suas ex-companheiras afirmando:  “quando eu sair eu te mato” — explica Renata Bravo dos Santos, mestra em Direitos e Garantias Fundamentais e assessora jurídica no Ministério Público do Espírito Santo, para quem determinados homens são chancelados para sairem impunes de atos de violência contra a mulher. — Está prevista em lei a proibição de matar, cometer agressões e abuso sexual. O agressor sabe que são crimes, mas esse conhecimento não inviabiliza a prática.

A cultura machista é tão forte na sociedade brasileira que a violência contra a mulher é naturalizada. Quando a mulher rompe os papéis tradicionais de gênero, o homem se sente no direito de paralisá-la, de silenciá-la. Ele não consegue entender a mulher em um espaço de liberdade, fora da subalternização. Por isso, não respeita a medida protetiva, que, coloca a mulher longe de seu domínio.

— Temos um problema cultural e social, a partir do qual homens e mulheres aprendem desde muito cedo o que são papéis de gênero.Quando uma mulher rompe com esses comportamentos, esse homem acredita que tem o direito de cometer uma violência contra ela — explica Juliana Martins, coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. — Precisamos pensar e entender que esse trabalho de enfrentamento à violência contra a mulher precisa de uma rede bem articulada. Para muitas, a medida protetiva não basta.

Para a juíza Adriana Ramos de Mello é preciso pensar em prevenção e investir em política públicas:

— O machismo e o patriarcado ainda são estruturais. Temos que trabalhar com a prevenção à violência de gênero e com mudanças na cultura da violência, mas não há investimento em políticas públicas do tipo. As mulheres que sofrem violência têm medo de denunciar, ou de seguir com as denúncias, e muitas se isolam. O isolamento, o medo e a vergonha de buscar ajuda e de comparecer aos órgãos oficiais fazem parte desse processo de violência que muitas mulheres vivem — explica.

Na véspera do Natal de 2020, o feminicídio da juíza Viviane do Amaral Arronenzi chocou o país. Ela foi morta pela ex-marido, Paulo José Arronenzi, a facadas, na frente das três filhas do casal. Ele não aceitava a separação. Ela pediu medida protetiva e uma escolta ao Tribunal de Justiça do Rio. Um mês antes do crime, dispensou a escolta. Em fevereiro deste ano, Ariane de Aguiar Araújo foi morta pelo companheiro, Rafael Washington Alves da Silva. Ela solicitou medida protetiva um ano antes, quando foi agredida por ele, e chegou a mudar de cidade. Mas Ariane foi morta na mesma semana em que reatou o relacionamento.

Como garantir que a medida protetiva está sendo cumprida e, mais: como fazer a mulher entender que, muitas vezes, reatar um relacionamento é correr risco de morte?

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Para Juliana Martins, o Estado não pode acreditar que as medidas protetivas funcionam sozinhas:

É preciso que haja fiscalização e acompanhamento dessas medidas de fato, e não apenas confiar que, por si só, elas irão garantir a segurança dessas mulheres. Estados e municípios precisam ter como prioridade a articulação de uma rede de proteção mais ampla, com a participação de diferentes setores aos quais a vítima possa recorrer. Além disso, essas medidas precisam ser concedidas rapidamente, de forma a possibilitar que outras ações sejam adotadas, como o acolhimento em abrigos — diz.

A juíza Adriana Ramos de Mello lembra que a Lei Maria da Penha prevê medidas de prevenção e de educação:

— Estamos investindo apenas na repressão quando temos que investir também na prevenção e na assistência às mulheres; com campanhas de conscientização sobre violência, alteração dos currículos escolares para inclusão de conteúdo sobre igualdade de gênero, respeito às mulheres e direitos humanos nas escolas e faculdades. Isso está previsto inclusive no artigo 8 da lei Maria da Penha, que ainda não foi cumprido integralmente — ensina.

A advogada Izabella Borges chama atenção para a necessidade de mudar estruturas, inclusive educando as equipes que prestam assistência a mulher:

— As medidas protetivas de urgência são extremamente úteis, mas é preciso que haja uma mudança profunda em nossas estruturas. O reduzido número de agentes públicos que atuam na defesa da mulher, além do despreparo desses funcionários, também são causas para o crescimento desse número.

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Renata Bravo dos Santos explica que é preciso entender que a violência contra a mulher não é uma questão isolada. Ela envolve também saúde, estrutura familiar e educação, entre outros aspectos da vida da mulher e da sociedade.

— O poder público precisa olhar para esse problema com uma lente mais ampla. E, quando necessário, poderemos oferecer a essa mulher uma resposta melhor, criando mecanismos de verificação para garantir o cumprimento das medidas.

* estagiária, sob supervisão de Renata Izaal

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