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Bebeu, dirigiu e matou: entenda a controvérsia jurídica sobre punir com mais ou menos rigor os homicídios por embriaguez

Luã Marinatto / O GLOBO

 

RIO — O vídeo mostra João Maurício Correia Passos, sem camisa e de bermuda branca, em um aparente esforço para permanecer de pé. Nas mãos, um copo e duas garrafas, uma de vodka e outra de uísque — as mesmas bebidas que, de acordo com uma testemunha, o bombeiro vinha misturando e consumindo no posto de gasolina em que o registro foi gravado, no Recreio dos Bandeirantes, Zona Oeste do Rio. Minutos depois de deixar o local, a menos de 200 metros dali, João Maurício atropelou e matou o ciclista Cláudio Leite da Silva.

 

A gravação foi um dos principais argumentos para que a Polícia Civil indiciasse o militar por “homicídio doloso”, mais precisamente o homicídio por dolo eventual, quando o autor assume, conscientemente (guarde essa palavra), o risco de matar, mesmo que sem esse objetivo. Na última terça-feira, porém, ao denunciar o réu à Justiça, o Ministério Público do Rio alterou a tipificação do crime para homicídio culposo de trânsito — aquele em que se presume a responsabilidade do autor, mas sem antecipação de consequências ou intenção. A denúncia, aliás, menciona o mesmo vídeo como prova de que João conduzia o veículo “com sua capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool”.

 

As diferentes avaliações não são por acaso: a linha tênue que separa as duas leituras para a mesma situação representa, segundo especialistas, uma das maiores controvérsias do Direito brasileiro, rendendo acalorados debates e até teses de doutorado. O centro da discussão está em duas figuras jurídicas distintas, mas ao mesmo tempo muito próximas: a do já citado dolo eventual e a chamada culpa consciente (guarde a palavra, mais uma vez).

O problema é que, para pender para um lado ou outro, é preciso entrar na cabeça do réu no momento do ocorrido — um exame de consciência muito complexo, por razões óbvias. Se, pelo conjunto de provas, o delegado, promotor ou juiz conclui que, ao praticar um crime, o autor tinha plena noção de que tal ato poderia, concretamente, acarretar uma morte, ele provavelmente optará pelo dolo eventual. Mas onde se encaixaria, por exemplo, um motorista que, apesar de embriagado, acredita plenamente na própria capacidade de conduzir o veículo em segurança, tanto para si quanto para terceiros?

— Isso é o que chamamos de excesso de confiança, ou superconfiança, e também afeta a tipificação. É o elemento subjetivo da conduta do acusado. O fato é que não há súmula vinculante do Supremo ou jurisprudência definitiva, tampouco se trata de uma única leitura possível. Não existe receita de bolo pronta. É o caso concreto que deve instruir a avaliação — explica o advogado criminalista Taiguara Libano, professor de Direito Penal no Ibmec e na UFF: — A despeito de uma opinião pública muito impactada pela violência de uma situação específica, a discussão é técnica.

O carro após o acidente Foto: Reprodução / TV Globo
O carro após o acidente Foto: Reprodução / TV Globo

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Para tentar solucionar a questão, algumas correntes do Direito defendem a formalização de um terceiro tipo penal, uma espécie de enquadramento intermediário entre a culpa consciente e o dolo eventual. A “culpa temerária”, com pena maior por ser considerada gravíssima, seria adotada nos casos em que, mesmo sem comprovação concreta de que o autor “assumiu o risco de matar”, a prática irresponsável — como dirigir bêbado, por exemplo — teve relação direta com o resultado final.

— O problema, aqui, é o preceito jurídico básico de que, na dúvida, o benefício deve ser do réu (origem da famosa expressão em latim “In dubio pro reo”). Se não existe comprovação do dolo, tem que ir para o culposo. Essa é a interpretação correta, e que vai acontecer na maior parte dos acidentes de trânsito — avalia Daniel Raizman, advogado e professor de Direito Penal da UFF.

Pelo Código Penal, o homicídio doloso, seja pela clara intenção de matar ou na modalidade do “dolo eventual”, tem pena de 6 a 20 anos de prisão, podendo ser acrescida a depender de agravantes. Já o homicídio culposo de trânsito, regido pelo Código de Trânsito Brasileiro, parte de 2 a 4 anos de reclusão. A legislação, contudo, prevê punição mais severa, de 5 a 8 anos, “se o agente conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa”. As penas também podem aumentar em caso de omissão de socorro ou inexistência de carteira de habilitação — esses fatos, porém, não afetam a tipificação do crime em si.

Ou seja, um motorista que siga viagem sem prestar auxílio à vítima após atropelar e matar, como o bombeiro João Maurício, não terá mais chance de responder por homicídio doloso. Do mesmo modo, também não representam garantia deste modelo de tipificação, por si só, o consumo de álcool ou o excesso de velocidade. Ainda assim, se somadas a outras fatores, são práticas que podem, sim, pesar na avaliação do caso.

— Leva-se em consideração se a ingestão de álcool foi muito acentuada, ou se havia um estado de euforia após sair de uma festa, por exemplo. Também se deve avaliar a conduta social do acusado, ou uma possível reincidência na condução de veículo sob efeito de bebida. Evadir-se e não permitir o exame de alcoolemia, em que pese o direito de não produzir provas contra si mesmo, é outro elemento a se analisar — enumera o professor Taiguara Libano, citando que relatos de testemunhas ou vídeos como o do bombeiro também podem ajudar a compor uma “prova robusta de embriaguez elevada”.

O debate sobre como enquadrar esse tipo de caso vai além do tempo de pena ao qual o autor estará submetido. No Brasil, apenas nos crimes dolosos contra a vida o julgamento ocorre no Tribunal do Júri. Por isso, a tipificação pode decidir se o réu será submetido à decisão de outros cidadãos ou à avaliação de um magistrado.

— Quando existe muita divergência, com possibilidade inclusive de gerar um conflito de competência durante o processo, pode acarretar até uma prescrição. Aí, em vez de obter-se uma pena maior, não se alcança punição alguma — diz o professor Daniel Raizman: — Eu entendo que muitas vezes a pena parece baixa, mas isso é outra discussão. Não se pode mudar de culposo para doloso única e exclusivamente para tentar aumentar a punição.

João Maurício Correia Passos chega à delegacia Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo
João Maurício Correia Passos chega à delegacia Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo

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