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A lei, os prefeitos e o Ministério Público

José Roberto Batochio, O Estado de S.Paulo

21 de novembro de 2020 | 03h00

Ao tomar posse, cada um dos cerca de 5.700 prefeitos do Brasil está ciente de que tem de partilhar a administração com a Câmara Municipal, fiscal por excelência de seus atos. Tem ainda de se sujeitar ao escrutínio de tribunais de contas. Mas o que estão todos eles a aprender, a duras penas, é que, em face do cipoal legislativo que os submete e disciplina, passaram a ter um coadjuvante na administração do município, um órgão onisciente que não só os fiscaliza, como os processa em juízo, imiscui-se na gestão como se fora um poder paralelo e determina tudo o que pode e deve ser feito.

O Brasil talvez seja o único país onde o Ministério Público mantém equipes especializadas em investigar e processar gestores públicos com exclusividade, especialmente prefeitos. Tome-se o caso de Minas Gerais. Um quarto dos prefeitos do Estado – 214 de um total de 853 – se vê acionado em juízo por promotores que se dedicam em tempo integral a garimpar microscópicas irregularidades formais. Em São Paulo, segundo levantamento do estudo Justiça e Cidadania no Brasil, organizado por Maria Teresa Sadek, nada menos que 247 – ou 38% – dos 645 municípios já tiveram seus prefeitos processados. Muitas ações são provavelmente procedentes, embora a quantidade de arquivamentos seja muito superior às condenações ao restar demonstrada a inocorrência de ilícitos.

Essa avalanche de processos decorre da profusão de leis e do crescente ativismo do Ministério Público na área, até mesmo sob forma de “requerimento de informações” e “recomendações”, que se convolam em ações por improbidade caso não atendidos. Banalizaram-se elas de tal sorte que a vida pública se tornou empresa temerária e de alto risco para os que nas urnas são consagrados pelo povo como seus legítimos governantes. Eis uma seara na qual o mantra da “eterna impunidade dos políticos” perde um pouco de significado.

A especiosa tutela desborda-se, de modo a prosperarem casos como o de Erval d’Oeste, município de 22 mil habitantes em Santa Catarina, onde, ao circularem notícias de que o prefeito se achava enfermo, a promotoria “abriu um procedimento” e fixou prazo de 48 horas para que a Câmara Municipal, o secretário de Administração e o próprio alcaide informassem seu estado de saúde – e assim ela (a promotoria) pudesse aquilatar se deveria ele continuar ou não no cargo. O mandatário tratava-se de câncer, mas continuava a despachar – situação idêntica à que se verificou em São Paulo. No Rio Grande do Sul, promotores notificaram os prefeitos de sete municípios da região de Frederico Westphalen, determinando que expedissem decretos para impor o racionamento de água por causa da ocorrente estiagem.

Nestes tempos de anomia da covid-19, membros do parquet de diversos Estados pretendem dirigir a administração municipal criando medidas de combate à pandemia. Não importa que a Constituição da República e o Supremo Tribunal Federal (STF) tenham assentado ser da competência dos governadores e prefeitos determinar as providências que escolham como as mais apropriadas e oportunas para o enfrentamento da patogenia – isentando-os até da obrigação de seguirem orientação do governo federal. Ainda assim, muitos continuam a ser intimados pelo Ministério Público a tomar ou deixar de tomar certas medidas – como, por exemplo, a flexibilização do distanciamento social que eles próprios decretaram.

Chama mais a atenção o fato de o governo federal – o grande ausente no combate ao novo coronavírus e, mais do que isso, omisso na implementação de regras de proteção que todos devem observar – haver sido, até pouco tempo atrás, tratado tão diversamente. Foram raras e pontuais as iniciativas da Procuradoria-Geral da República para compelir o Ministério da Saúde a cumprir o seu papel na crise sanitária. E muito menos ainda empreender ações para obter do presidente da República cuidados sanitários mínimos, como evitar aglomerações e usar máscara em público – obrigação imposta pelo governo do Distrito Federal –, sob pena de multa. Mas em Belo Horizonte, por atuação do Ministério Público, a prefeitura teve de revogar o decreto que impunha sanção pecuniária a quem não usasse essa proteção facial em público.

Tal ofensiva se insere na progressiva marcha da criminalização da atividade política no Brasil. É de duvidar que algum prefeito, mesmo o mais correto e escrupuloso, deixe o cargo após cumprir o mandato sem vários processos no currículo – e uma mancha na honra pessoal. E um dos efeitos colaterais mais deletérios dessa escalada é o afastamento da administração pública de vocacionados homens de bem, que não ousam se expor – e expor a sua família – a ações judiciais por aquilo que tantas vezes não passa de simples equívoco administrativo ou divergência na interpretação de normas de administração. Tratada dessa forma, a vida pública acaba mesmo por ficar para os que têm nervos de aço, ou, então, nada a perder.


ADVOGADO, FOI PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DA OAB E DEPUTADO PELO PDT-SP

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