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O BRASIL VAI DEIXAR AS PESSOAS MORREREM?

DENIS RUSSO BURGIERMAN / ÉPOCA

A saúde no Brasil não é uma maravilha, nem nunca foi. Mas andou fazendo progressos. Trinta e poucos anos atrás, os deputados constituintes reunidos em Brasília resolveram cometer a ousadia de garantir a todos os brasileiros o acesso à saúde. Muita gente nem sabe disso, mas, antes de 1988, só havia dois jeitos de obter tratamento médico: pagando caro por ele ou recebendo caridade, talvez de uma instituição da Igreja, como a Santa Casa.

A nova Constituição de 1988 foi direta e clara: saúde passou a ser não só direito de todos, mas também dever do Estado. Haveria no país um sistema público, gratuito e universal de saúde, como em quase todos os países desenvolvidos do mundo (os EUA são a exceção notável), garantindo que dinheiro não seria necessário para evitar que alguém seja abandonado para morrer sem atendimento. Nascia do nada, com uma promessa no papel, o SUS, Sistema Único de Saúde.

E se eu sair dizendo que o SUS é uma das grandes maravilhas da humanidade, sei que não vou convencê-lo. Não é uma maravilha: o SUS tem carência de equipamentos, filas monstruosas, que em algumas especialidades se estendem por anos, leitos de menos, tabelas tão defasadas a ponto de que um médico não ganha muito mais para fazer um procedimento para a rede do que ganharia dirigindo um Uber.

Mas, com todos os seus defeitos, é inegável que o SUS diminuiu a barbárie deste país. Isso é evidente nos números. Da criação do SUS até hoje, a mortalidade infantil caiu incríveis 70%, graças principalmente a um programa barato chamado Saúde da Família: equipes de saúde espalhadas por todo o território nacional, perto da população toda. Essas equipes mal dispõem de equipamento ou medicamento, mas a mera presença de médicos e enfermeiros salvou a vida de milhares de bebês recém-nascidos, que ganharam o direito de crescer e de escapar da miséria.

A expectativa de vida do brasileiro engordou uma década inteira desde o surgimento do SUS: vivíamos em média 66 anos, hoje passamos dos 76. Parecia que estávamos mesmo tornando-nos um pouquinho mais próximos dos países civilizados da Europa ou da Ásia, onde a vida costuma passar dos 85 anos.

O primeiro grande teste do novo sistema de saúde brasileiro foi, imagine você, uma pandemia: a aids, que surgiu naqueles 1980s e de lá para cá mataria 30 milhões de pessoas no planeta. O vírus HIV espalhou tragédia pelo mundo, mas foi especialmente destrutivo na África Subsaariana, onde encontrou terreno fértil: pobreza extrema que dificultava acesso aos medicamentos, lideranças populistas espalhando desinformação e crendices, ninguém ouvindo os cientistas, a não ser uns malucos negacionistas.

A pandemia de Aids na África foi uma tragédia humana avassaladora, incalculável: mais da metade das mortes por HIV no mundo aconteceu lá. E depois essa primeira tragédia foi engrossada por uma segunda: o colapso econômico, que advém da mortandade. No crepúsculo do século 20, calculava-se que os países da África Subsaariana tinham visto 20% de seu PIB evaporar, diante do fracasso em conter a pandemia.

Enquanto isso, o Brasil, dotado de SUS, saiu-se bem. Os técnicos do Ministério da Saúde levaram a sério o dever novo estabelecido na Constituição e foram em busca de uma solução. Negociaram duro com a indústria farmacêutica internacional, inclusive ameaçando quebrar as patentes dos medicamentos. Acabaram conseguindo obter o coquetel anti-aids a um preço baixo o suficiente para que fosse possível comprar grandes lotes.

Os brasileiros, assim como os suecos, os franceses, os alemães, os dinamarqueses, os portugueses, os japoneses, os australianos, os canadenses, se contaminados com o HIV, passaram a poder ir ao SUS e retirar os remédios gratuitamente.

O Brasil foi o primeiro país em desenvolvimento a oferecer testes e tratamento contra o HIV para toda a população e virou exemplo raro de história de sucesso de um país que não é rico e ainda assim conseguiu conter uma pandemia antes de ter sua economia devastada por ela. Sem esse sucesso, dificilmente o Brasil teria fôlego para a prosperidade que viria a partir dos final dos anos 1990 - assim como a África não teve.

É por isso que é tão chocante que, nas ações contra o Covid, o Brasil esteja decididamente caminhando na trilha dos países africanos que se ferraram com a aids: ignorando e até perseguindo cientistas, não fazendo testes para não saber, deixando as curvas de contágio subirem rápido demais, espalhando crendices e gerando ruído na comunicação.

O descaso do governo brasileiro com o Covid ficou evidente na já histórica reunião de gabinete na qual se falou dos maiores absurdos, mas não houve um minuto de discussão embasada sobre como conter a doença - só sobre como aproveitar a distração que ela causa para emplacar agendas obscuras.

A consequência da inoperância já pode ser sentida: o Brasil é o país do mundo com mais contágios e com mais mortes por dia. Tudo indica que caminhamos para uma crise econômica pesadíssima e longuíssima, enquanto os países que levaram a ameaça a sério já planejam a retomada.

Mas o mais chocante é que o Brasil, contra aquilo que está prometido na Constituição, parece ter aceito o fato de que vai deixar milhares morrerem. Se, nos anos 1980, funcionários do Ministério da Saúde enfrentaram o mundo para salvar sua população, agora parecemos resignados com nossa própria incompetência.

O Brasil tem plenas condições de vencer essa ameaça: tem um sistema público de saúde, tremendamente subfinanciado mas presente no território todo. E tem também um sistema privado, que tem mais leitos de UTI que o público, e que tem sido fartamente irrigado com dinheiro público - um terço do orçamento do Ministério da Saúde é para financiar saúde privada.

Grande parte dos nossos hospitais privados juridicamente são instituições filantrópicas, sem fins lucrativos, cheias de benefícios fiscais. Até por isso, o governo tem todo o direito, garantido por lei, de requisitar esses leitos para organizar uma fila única e impedir que as pessoas morram em casa, sem atendimento. E a rede privada tem a obrigação, inclusive constitucional, de ceder os leitos.

Nada disso está sendo feito. Estamos há duas semanas sem nem ministro da Saúde, com o governo federal fazendo nada para conter a tragédia e boicotando quem faz. Deixando que os hospitais privados, financiados com dinheiro público, atendam só quem pode pagar, enquanto os hospitais públicos estão em colapso e nossas taxas de mortalidade superam de longe as de qualquer país decente.

Isso não é só uma tragédia. É um crime também. É uma grande infâmia, dessas que serão contadas por gerações e deixarão lições sobre os perigos de um mal governo. Governante que não cumpre seu dever e que, por isso, causa milhares de mortes é criminoso. Espero que os nossos paguem.

 

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