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Inspiração para o Brasil? Com identidade digital, Índia superou o desafio de cadastrar população de mais de 1 bilhão

Sérgio Matsuura / O GLOBO

INDIANOS

 

 

RIO E BRASÍLIA - Um dos principais problemas enfrentados pelos beneficiários do auxílio emergencial é a falta de documentação em dia. O primeiro empecilho foi a exigência de CPF regularizado, regra que acabou sendo flexibilizada, mas muitos brasileiros sequer têm RG, ou até mesmo certidão de nascimento.

Segundo os dados mais recentes do IBGE, relativos a 2015, cerca de 3 milhões de pessoas vivem nessa situação e, por consequência, não podem receber os pagamentos de R$ 600.

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Uma solução adotada pela Índia, que enfrentava a mesma dificuldade, pode servir de exemplo a ser seguido. Com mais de 1,3 bilhão de habitantes, o país asiático possui bolsões de desenvolvimento, mas também milhões de pessoas vivendo na extrema pobreza.

Há pouco mais de uma década a situação era bem pior, e as políticas de auxílio aos mais necessitados esbarravam na inexistência de um cadastro seguro e confiável.

Em 2007 o governo indiano anunciou o lançamento do Aadhaar, que começou a operar dois anos depois. Trata-se de um registro com 12 números, que está conectado a um banco de dados biométricos para assegurar a identidade de cada pessoa.

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O sistema começou coletando a impressão digital, mas expandiu para o reconhecimento de íris e de face.

Além das informações biométricas, o registro está atrelado a nome, data de nascimento ou idade declarada (para quem não possui documentos), endereço, gênero, outros membros da família e, como informações opcionais, número de telefone celular e e-mail.

Combate à corrupção

O registro não é obrigatório. Para ampliar a adoção, o governo indiano atrelou o documento a todos os programas sociais e órgãos públicos.

E com o tempo, o setor privado começou a oferecer serviços autenticados pelo Aadhaar de maneira simplificada, como a aquisição de números de telefonia celular e a abertura de contas bancárias.

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A estratégia deu certo. Hoje, 1,257 bilhão de indianos possuem o registro, segundo a Autoridade de Identificação Única da Índia (Uidai, na sigla em inglês), agência criada para implementar e gerenciar o programa.

“O conceito da Uidai era fornecer um número de identificação único para todos os residentes na Índia provarem sua identidade a qualquer hora, em qualquer lugar”, afirmou J. Satyanarayana, presidente da Uidai, no relatório mais recente sobre o programa.

“O Aadhaar cresceu para se tornar o maior sistema de identificação biométrica do mundo”, acrescentou.

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É pelo Aadhaar que os indianos têm acesso, por exemplo, ao MGNREGA (Mahatma Gandhi National Rural Employment Guarantee Act), programa do governo que garante emprego e renda por ao menos cem dias por ano para a população rural desempregada.

O subsídio para a compra de gás de cozinha também é liberado pelo documento, assim como as pensões.

Maior ‘bancarização’

Em agosto de 2014, a plataforma serviu de base para o lançamento de um programa de inclusão financeira, batizado como Jan Dhan Yojana. De maneira simples, qualquer pessoa com um número Aadhaar podia abrir uma conta bancária.

Segundo dados do relatório Global Findex, do Banco Mundial, em 2011 cerca de 40% dos adultos indianos tinham conta em banco, percentual que saltou para 80% em 2017, sendo 66% delas abertas pelo programa.

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Para além dos programas sociais e serviços, o Aadhaar se mostrou uma importante ferramenta no combate à corrupção.

No livro “Aadhaar: A história biométrica da revolução em 12 dígitos da Índia” (em tradução livre), o jornalista Shankkar Aiyar explica que o programa “permitiu a milhões — especialmente os marginalizados — acesso a um instrumento oficial para dizer “eu sou quem eu sou”.

O fato é que, por décadas governos injetaram trilhões, quase 3% do PIB, em subsídios, bolsas de estudo, pensões e outros programas sociais, mas quase metade desse investimento nunca chegava aos beneficiários por causa da corrupção”.

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No Brasil, o pagamento do auxílio emergencial escancarou os problemas do país no cruzamento de dados da população. O governo já admitiu problemas no cadastro do programa, que levaram inclusive a casos de fraude.

Como o GLOBO revelou, a falta de uma análise mais rigorosa abriu espaço para que pessoas que não se enquadram nas exigências para receber o benefício tivessem acesso ao repasse, até mesmo criminosos.

Segundo técnicos que acompanharam a elaboração do sistema, um dos problemas foi na análise da base de dados do Imposto de Renda.

A Dataprev checou na Receita Federal se os requerentes se enquadravam em um dos critérios de acesso, que é não ter declarado rendimentos acima de R$ 28,5 mil em 2018.

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No entanto, não verificou se essas pessoas eram dependentes de contribuintes com renda mais alta. O resultado foi uma brecha para que filhos e cônjuges integrantes de famílias mais ricas conseguissem burlar o sistema.

No início da semana, o governo informou que já identificou ao menos 160 mil fraudadores, inclusive sócios de empresas. A Dataprev admite que o processo precisa ser aprimorado. A estatal acrescentou que “casos pontuais são passíveis de ocorrer”.

Reformulação

Na Índia, o PAN (Permanent Account Number, documento de identificação de contribuintes, como o nosso CPF) é obrigatoriamente atrelado ao Aadhaar.

Com a centralização de informações, a checagem seria mais simples e eficiente, caso o governo indiano implementasse um programa como o adotado por aqui.

Nitin Pai, diretor do Instituto Takshasila, explica que o governo indiano reforçou os pagamentos às populações rurais, pensionistas e criou um benefício para mulheres pobres, mas não há um programa amplo de transferência direta, como o auxílio emergencial, para o combate ao vírus.

— Não existe um programa de transferência direta de dinheiro em massa. É uma parte necessária da solução, mas até agora, nem o governo Modi nem os estados demonstraram interesse — afirmou. — A transferência de dinheiro é definitivamente o mais eficiente programa de bem-estar.

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Mas a concentração de dados pessoais nas mãos do governo levanta debates sobre a privacidade, como o risco de vazamentos de dados, o compartilhamento com terceiros e a possibilidade do uso das informações para vigilância do Estado.

Em 2018, o Aadhaar foi levado à Corte Suprema da Índia, que considerou o sistema constitucional, mas proibiu sua exigência para abertura de contas em bancos, aquisição de linhas de telefonia móvel e acesso à educação.

Segundo a pesquisa “State of Aadhaar”, divulgada no fim do ano passado para marcar uma década da adoção do sistema, 80% dos indianos consideram que o sistema de identidade única tornou os programas sociais mais confiáveis e 92% se consideram satisfeitos.

— A tecnologia, quando usada de maneira responsável, é uma força poderosa para a inclusão — afirmou Roopa Kudva, diretor da Omidyar Network India, financiadora da pesquisa. — O Aadhaar foi um divisor de águas, permitindo a inclusão dos indianos mais vulneráveis.

(Colaborou Marcello Corrêa)

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