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Gravidez não planejada: uma epidemia silenciosa

Luis Bahamondes / FOLHA DE SP
GRAVIDEZ NA ADOLESDCENCIA

No Brasil nascem anualmente cerca de 3 milhões de crianças. Embora não apresente um problema de natureza demográfica, o país padece de uma epidemia silenciosa, chamada gravidez não planejada. É estimado que 52% das gravidezes não são planejadas e, entre adolescentes, a taxa chega a 62%.

A melhor forma de se evitar gravidez não planejada é usando contraceptivos de alta eficácia e longa duração, como os dispositivos intrauterinos (DIUs) e os implantes. Estes métodos apresentam taxas de insucesso inferiores a 1%, enquanto outros mais utilizados, como pílula, injetáveis ou preservativos, de 8% a 12%. O uso de DIU entre mulheres de 15 a 49 anos gira em torno de 2%, quando sabemos que 75% são dependentes do Sistema Único de Saúde (SUS). Essa baixa taxa de uso contribui para altas taxas de gravidez não planejada e consequente morbidade e mortalidade materna.

O DIU é pouco usado porque os médicos não o colocam. Embora esteja entre os contraceptivos disponibilizados pelo SUS, muitas vezes não está disponível, ou ultrapassa seu prazo de validade. Muitas vezes, também, os médicos não foram capacitados para a inserção ou pertencem a programas que não estabelecem sistemas de atenção em caso de complicações.

Em dezembro último, o Ministério da Saúde emitiu a nota técnica nº 38, que proíbe os enfermeiros de inserir DIU no âmbito da atenção básica e maternidades. A nota revoga autorização prévia, mas não apresenta qualquer embasamento ou argumento científico esclarecedor. 

O Conselho Federal de Medicina (CFM) apoiou a decisão, e a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) também se posicionou de forma contrária à determinação anterior do ministério que autorizava a inserção de DIU por enfermeiros capacitados. 

O CFM declarou que “(...) a tentativa de invasão de outros profissionais da medicina estaria causando inúmeros problemas à saúde dos brasileiros e investe contra o desrespeito à Lei do Ato Médico”.

O fato incrível é que o ministério se apoie na Lei do Ato Médico, que estabelece ser atividade privativa do médico a realização de procedimentos caracterizados pela invasão dos orifícios naturais do corpo, atingindo órgãos internos. A Febrasgo indica que a colocação do DIU é um ato “complexo, que atinge o interior do útero”.

Se a Lei do Ato Médico veda a não médicos a “invasão dos orifícios naturais do corpo”, a pergunta que se impõe é porque os enfermeiros estão autorizados a passar sonda vesical ou nasoenteral, fazer punção venosa e realizar toque vaginal durante o trabalho de parto? Porque são atividades que os enfermeiros podem realizar, por estarem habilitados e capacitados para fazê-lo.

Quais seriam os problemas decorrentes se os enfermeiros inserissem DIUs? Talvez afetar os limites de mercados de atuação das duas categorias de profissionais de saúde. Os enfermeiros autorizados viriam certamente aliviar a carga de trabalho de muitos médicos no setor público, que poderiam liberar parte de suas agendas e melhorar o atendimento ao combalido sistema de atenção aos doentes do Brasil.

Não existe qualquer evidência científica para proibir enfermeiros de inserirem DIUs. É uma prática simples, maiormente isenta de qualquer complicação em muitos países. Na Unicamp, inclusive, enfermeiras têm colocado DIU com enorme aceitação e sucesso, há mais de 40 anos, sem complicações e em números superiores aos dos médicos.

O parecer do ministério deixa transparecer o ranço de reação corporativista e elitista. A decisão, mal fundamentada e inoportuna, afetará milhares de mulheres que precisam de atendimento no SUS e não acrescenta qualidade ao importante trabalho que o sistema oferece. 

O profissional de enfermagem pode e deve cumprir um papel importante no acesso ao planejamento familiar, uma prioridade no Brasil. A colocação de DIU está, sim, dentre os seus atributos, que devem ser resguardados em pleno exercício de atividades regulares, e que sua prática, assim como para os médicos, esteja apenas a depender de sua correta e oportuna capacitação.

Luis Bahamondes

Professor titular de ginecologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp

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