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Com os pobres, a roda gira - FLÁVIA OLIVEIRA

Vivesse na planície, o ministro Paulo Guedes compreenderia por que o topo da pirâmide poupa e a base gasta. Do Planalto — em Brasília e vida afora — não enxerga. Na entrevista a Alexa Salomão, da “Folha de S.Paulo”, a quem antecipou o ambicioso conjunto de medidas encaminhado ao Congresso Nacional na última terça-feira, declarou em tom crítico: “Os ricos capitalizam seus recursos. Os pobres consomem tudo”. O titular da superpasta da Economia, que apresentou a reforma do Estado usando pulseira com indicação de um versículo do Apocalipse, último livro da Bíblia, parece não entender que os mais pobres fazem o dinheiro circular, a roda girar. São redistributivos. Uma bênção.

Na Síntese de Indicadores Sociais 2018, o IBGE informou que o rendimento domiciliar per capita mediano da metade mais pobre da população brasileira é de R$ 414. Em estatística, mediana é o número que divide em partes iguais um conjunto de valores ordenados. Assim, 50% dos lares de menor renda nem chegam a ganhar R$ 414 por mês. É pouco. Já no grupo dos 10% mais ricos, a mediana é de R$ 4.229. Famílias pobres são numerosas: 3,5 pessoas por residência, contra 2,3 entre os ricos. E reúnem mais crianças: 28% dos moradores têm idade de zero a 14 anos; entre os ricos, a proporção é de 10,2%.

Casa de pobre tem muita gente, muita criança e pouco dinheiro. Por isso, eles não poupam. Gastam o que têm para comer, morar e iluminarem-se — não no sentido espiritual, mas no literal, pois a energia elétrica está entre os itens de maior peso na cesta de produtos e serviços da baixa renda. Em janeiro de 2020, quando entra em vigor a nova ponderação dos índices de preços do IBGE, a conta de luz vai representar 4,777% do INPC, a inflação das famílias com renda de até cinco salários mínimos. Em apropriação do orçamento, só perderá para o aluguel (5,3228%).

Paulo Guedes reproduziu entendimento que remete a Delfim Netto, o todo-poderoso da economia na ditadura militar: primeiro fazer o bolo (de riqueza) crescer, depois distribuir. Foi com essa receita que a desigualdade brasileira atravessou gerações e se perpetuou. No século XXI, recomenda-se que esse hiato seja combatido; é contra ele que o povo chileno se insurge há semanas.

O Brasil está entre as dez maiores economias do planeta, mas a concentração de renda trava o bem-estar social. Também na Síntese de Indicadores Sociais, o IBGE revelou que a proporção de miseráveis alcançou o maior nível desde 2012, 6,5%. São 13,5 milhões de pessoas vivendo com menos de R$ 145 por mês — ou US$ 1,90 por dia na linha delimitada pelo Banco Mundial. Na pobreza (menos de R$ 402 por mês), estão 52,5 milhões, dos quais três em cada quatro têm a pele preta ou parda.

Num país com nível recorde de trabalhadores na informalidade, patamar mínimo de empregados com carteira assinada, galopante deterioração dos indicadores sociais, o ministro da Economia já propôs reduzir o benefício de assistência aos idosos de 60 a 70 anos para R$ 400 por mês — felizmente, derrubado pelos parlamentares no texto final da reforma da Previdência. Agora, a equipe econômica encaminhou ao Congresso a desvinculação do Benefício de Prestação Continuada do salário mínimo, como assinalou a economista Laura Carneiro, professora da USP. Se aprovada, a medida vai viabilizar a perda de valor dos repasses, que não mais acompanharia o piso das aposentadorias.

Em vez de recompor e elevar o poder de compra dos mais pobres, o Estado brasileiro tenta oferecer menos a eles. Combinada às reformas liberais, de efeitos demorados, políticas de segurança orientadas ao extermínio e ao encarceramento em massa sugerem que a base da pirâmide parece condenada à miséria, à precariedade, ao cárcere e à morte. Tudo menos prosperidade. O GLOBO

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