Reforma da Previdência: mudanças vão atingir mais de 100 milhões de brasileiros
Bárbara Nóbrega e Johanns Eller* / O GLOBO
RIO — Do trabalhador da cidade ao do campo, do servidor público ao empregado na iniciativa privada, areforma da Previdência proposta pelo governo Bolsonaro vai atingir mais de cem milhões de brasileiros que trabalham e os que ainda vão entrar no mercado. Se o projeto for aprovado pelo Congresso, as regras para se aposentar serão mais duras para todos. Porém, quem ganha mais vai contribuir mais. A idade mínima promete corrigir a desigualdade do atual sistema, em que os mais ricos se aposentam mais cedo.
As medidas cobram um preço de cada um em nome do interesse de todos. O déficit da Previdência consome cerca de 60% das despesas do governo, cujo rombo fiscal projetado para este ano é de R$ 139 bilhões. Sem mudar isso, os economistas dizem ser impossível garantir o pagamento das aposentadorias e abrir espaço para mais investimentos públicos em serviços essenciais, como saúde e educação.
O agricultor Lucindo passará a contribuir para a Previdência, mas a servidora Luciana descontará mais do seu salário. A professora Natália terá de ficar mais tempo na sala de aula, e o estudante Matheus já sabe que vai iniciar sua vida profissional com a perspectiva de parar só aos 65 anos — isso se, até lá, a idade mínima não mudar com o ajuste automático, seguindo a expectativa de vida do brasileiro.
Falta trabalho
A reforma chama a atenção até mesmo de quem tem uma prioridade maior: arrumar um emprego.
Desempregada há dois anos, Leilane Azevedo, de 21, vive na Zona Norte do Rio com uma irmã e dois filhos. Ela vê como positiva a proposta de redução da contribuição previdenciária de 8% para 7,5% para quem ganha salário mínimo, mas pondera: isso só faria alguma diferença para ela se tivesse um emprego para ganhar ao menos o piso nacional de R$ 998, como quando trabalhou numa padaria. Hoje, só conta com a pensão de R$ 300 do ex-marido e R$ 229 do Bolsa Família. Nas contas do governo, porém, a aprovação da reforma deve impulsionar a economia e criar 8 milhões de vagas até 2023. Leilane espera reconquistar em breve o direito de contribuir para ter uma aposentadoria no futuro:
— Essa redução na contribuição para quem ganha menos vai servir para pagar outra conta. Mas eu teria de ter uma carteira assinada para sentir essa diferença. Hoje, como posso contribuir, por fora, como autônoma? Não sobra.
* Estagiário, sob a supervisão de Luciana Rodrigues
Servidora pública desde 1999, a tecnologista em saúde pública ganha R$ 9,5 mil. Na regra atual, ela poderia se aposentar aos 55 anos, com benefício integral. Se a reforma for aprovada, terá de esperar até os 62 para receber na aposentadoria o equivalente a seu salário atual. Enquanto os trabalhadores da iniciativa privada têm seu benefício limitado ao teto do INSS (R$ 5.839,45), os servidores que ingressaram até 2003 têm direito à integralidade (mesmo salário na aposentadoria).
— Pela reforma, vou pagar uma contribuição previdenciária maior. Até acho justo que quem tem maior renda pague mais. Porém, no Brasil todo mundo paga muitos impostos. Para onde isso vai? Há garantias de que a saúde e a educação pública vão melhorar?
O universitário realizou o sonho de cursar Astronomia ciente de que as oportunidades da área estão amarradas à pesquisa acadêmica, o que significa iniciar sua jornada no mercado de trabalho mais tarde, após uma trajetória de estudos que se estende até o pós-doutorado: são pelo menos 15 anos. Com a reforma da Previdência, só poderá se aposentar após 40 anos de contribuição.
Mas o governo também prevê criar um novo regime para os trabalhadores que ainda não começaram a contribuir para o INSS: o sistema de capitalização, na qual o jovem poupa hoje para pagar sua própria aposentadoria no futuro.
Bernini, porém, tem dúvidas sobre esse sistema, que não sabia estar nos planos do governo:
— Preciso saber antes que tipo de retorno terei no futuro.
Funcionária de uma empresa privada, Nathalia tem a carteira assinada há dez anos e trabalha em São Paulo, na área de marketing. Ela e o marido não têm filhos. Conta com uma renda de cerca de dez salários mínimos e investe em uma previdência privada desde o início da sua vida profissional.
— Acho que a reforma da Previdência é necessária, porque da forma como está hoje não pode continuar. Não acho injusto aumentar a idade para homens e mulheres, porque, mesmo que as mulheres se sobrecarreguem com a rotina doméstica, os homens muitas vezes têm de trabalhar mais para manter a renda em casa. Hoje não conto com a Previdência Social para a minha aposentadoria. Acho que ela deve ser voltada para quem não tem condições de ter uma previdência privada.
A dificuldade da família em bancar a passagem para a escola levou Silvio Teixeira a abandonar o ensino fundamental e começar a trabalhar aos 16 anos. Ele, que já foi ajudante de obras e camelô de trem, hoje ganha a vida vendendo aipim. Só contribuiu para o INSS por um curto período de cinco anos. Por isso, nem conta com a Previdência. Para se aposentar, planeja construir quitinetes e viver dos aluguéis. Nem o corte de 0,5% na alíquota de quem ganha até um salário mínimo o atrai para a formalidade.
— Ao trabalhar com carteira, você ganha uma miséria e escolhe entre comer ou se vestir — diz Teixeira, que ergueu uma casa de três andares. — Não conto com o governo. Já vi muita gente sem receber aposentadoria, como os servidores do Rio na crise do estado. Prefiro contar com minhas quitinetes.
Professora de Matemática há sete anos das redes pública e privada do Rio, Natália dá aulas de segunda a sexta-feira, das 7h às 21h. No tempo que sobra, planeja as 44 aulas que leciona por semana, além de corrigir provas, trabalhos e atualizar fichas dos alunos. Com a reforma, terá de trabalhar mais tempo e só poderá se aposentar aos 60 anos. Na regra atual, não há idade mínima para professor da iniciativa privada. Para ela, bastaria contribuir por 25 anos.
— É difícil ter que atender no mínimo 40 alunos por sala, em mais de três escolas. É uma rotina muito pesada. Eu ainda sou nova, mas não sei se aguentaria esse ritmo mais velha. Há a questão do mercado de trabalho. Atualmente, no perfil de contratação, buscam-se professores mais jovens.
Agricultor familiar, o trabalhador rural de 47 anos é assentado da reforma agrária em Goiás. Mora com a mulher, o filho de três anos e a mãe, de 80 anos, que é aposentada rural. Produz feijão, arroz, abóbora, além de ter alguns animais. Sua produção é praticamente toda voltada para sua sobrevivência e a da família. A produção excedente é rara, portanto não possui renda mensal fixa. A reforma prevê contribuição para os trabalhadores rurais e idade de 60 anos para aposentadoria, e não mais 55.
— Dormimos muito cedo e levantamos às quatro da manhã, ficando expostos a sol e chuva, trabalhando com enxada o dia inteiro. Quando chegamos aos 60 anos, nem aguentamos mais. Hoje, se tiver contribuição anual, 90% dos agricultores não conseguirão pagar. A maioria não vai se aposentar.