Seguro obrigatório de carro tem ao menos 12 mil fraudes no Brasil
Baleados registrados como vítimas de trânsito, uma mãe que fez a falsa declaração de que sua filha estava paraplégica e um professor de artes marciais dando aulas práticas quando, ao menos na teoria, deveria estar se recuperando de uma fratura exposta.
Todos esses casos são exemplos das quase 12 mil fraudes identificadas em 2018 ao DPVAT (seguro para danos causados por veículos), em todo o país. O número equivale a 2% dos 597 mil pedidos feitos aos seguros no país em 2018.
Segundo cálculos da seguradora Líder, responsável pela administração deste seguro público, a identificação dessas fraudes gerou a economia de R$ 70 milhões ao fundo.
Todo brasileiro que se envolver em um acidente de trânsito com veículo automotor, seja pedestre, passageiro ou motorista, tem direito a indenização. O dinheiro para isso sai de um fundo abastecido com o seguro obrigatório pago por todos os condutores.
A incidência não é uniforme. O Ceará, que tem apenas a 9ª maior frota do Brasil, contabiliza 1 em cada 5 fraudes do tipo no país, o que o coloca há anos no topo do ranking de irregularidades no setor (seguido em 2018 por SP e RS).
No estado, para cada 8 seguros pagos, 1 fraude é identificada, o sêxtuplo da média nacional. De acordo com a Líder, há anos quadrilhas no Ceará têm se especializado em fraudar o DPVAT.
Os seguros cobrem casos de morte, invalidez ou despesas médicas e podem chegar a pagar R$ 13.500 ao acidentado ou à sua família.
Para identificar essas irregularidades, a seguradora diz montar um gigantesco banco de dados com os pedidos. Cada um deles traz informações do acidentado, dos médicos que o atenderam e detalhes da dinâmica do acidente. Mais de 200 critérios são analisados com a utilização de algoritmos específicos.
Verifica-se, por exemplo, se um mesmo motociclista pede diferentes vezes o mesmo seguro. Ou se um médico emite muito mais laudos de vítimas de trânsito do que conseguiria atender.
Uma equipe de médicos ainda avalia os laudos emitidos em busca de incoerências. Como ocorre nas grandes seguradoras, não raro um auditor da empresa procura o acidentado para checar se a história contada é real.
Quando há a constatação de crimes, a seguradora faz denúncias à Polícia Civil ou ao Ministério Público.
Pelos cálculos da Líder, 62 pessoas foram condenadas (23 delas presas) em 39 processos em todo o país por participarem de redes de fraudes. Além disso, houve 33 cancelamentos, suspensões ou cassações de registros em órgãos de classe como conselhos de medicina e de fisioterapia.
Um dos casos revelados foi o de um fisioterapeuta na cidade de Santa Quitéria, no Ceará, que emitia um volume atípico de laudos de acidentados no trânsito.
Descobriu-se que uma quadrilha angariava pessoas acidentadas no trânsito e oferecia o serviço de facilitar o recebimento de seguros no DPVAT. Essas pessoas eram encaminhadas a uma clínica de fisioterapia que emitia laudos e recibos de tratamentos não realizados. O esquema teria conseguido pegar R$ 400 mil em mais de 600 casos.
O fisioterapeuta está em prisão domiciliar e teve um pedido de liberdade negado nesta semana. Outros membros da quadrilha também são investigados.
Também no Ceará, na cidade de Boa Viagem, uma operação do Ministério Público desarticulou uma quadrilha composta por policiais civis, guardas municipais e um médico.
As acusações, segundo a procuradoria, são de crimes em série como estelionato, falsidade ideológica e de documento público, uso de documento falso, corrupção ativa e corrupção passiva.
O promotor Alan Moitinho Ferraz, responsável por acompanhar os desdobramentos da operação, explica que a quadrilha entrava em contato com pessoas que haviam se acidentado em quedas normais ou brigas.
A documentação dessas pessoas era utilizada para dar entrada em pedidos de seguro por acidentes de trânsito. Laudos médicos, relatórios de internação e boletins de ocorrência eram fraudados.
A quadrilha contava até com um membro da Prefeitura de Boa Viagem que trabalhava como escrivão dentro de uma delegacia da Polícia Civil.
"Até onde se sabe, nenhuma das vítimas era beneficiada com o recebimento das indenizações. Todo o valor ficava com a quadrilha", diz Ferraz.
Alguns casos de fraudes ao DPVAT revelados em 2018 explicitam a discrepância das situações real e alegada.
FRATURA EXPOSTA
Um professor de muay thai em Maringá (PR) sofreu um acidente de motocicleta no final de 2017. Segundo seu prontuário médico, ele deu entrada no hospital com um trauma na coluna. Foi encaminhado para uma cirurgia e se recuperou rapidamente.
Meses depois, ele teria apresentado à seguradora Líder exames feitos no IML que apontavam uma sequela em 50% de uma das pernas, fruto do mesmo acidente. O exame médico indicava que o homem havia sofrido uma fratura exposta na perna na época do acidente, informação não descrita no prontuário médico do primeiro atendimento.
A seguradora enviou à cidade do professor um auditor que o encontrou dando aulas de artes marciais, sem sinais de sequelas.
O auditor chegou a fazer uma aula prática com o professor, antes de se identificar como funcionário da seguradora. O seguro não foi pago.
BALEADOS E VÍTIMAS DE TRÂNSITO
Um funcionário do Hospital Estadual da Restauração, no Recife, abordava pacientes que haviam sido vítimas de disparos de armas de fogo. Ele dizia que elas teriam o direito de receber indenizações pelo seguro DPVAT.
O funcionário então adulterava documentos hospitalares para que as vítimas conseguissem o dinheiro, enquanto ele recolhia uma parcela do seguro. A seguradora estima que 19 pedidos de seguros de invalidez foram feitos desta maneira e geraram o pagamento indevido de R$ 243 mil no total.
FILHA FALSA PARAPLÉGICA
A filha de Emanuele Gomes de Sousa, que supostamente atuava como intermediária fazendo pedidos do seguro DPVAT, deu entrada com um pedido de indenização por invalidez parcial devido um acidente de trânsito.
Segundo a requisição, a filha de Emanuele teria ficado paraplégica em um acidente ocorrido em Brasília.
Fotos em redes sociais porém, indicavam que a jovem não tinha a sequela. A seguradora então verificou que além da filha, outro filho, um genro e um cunhado de Emanuele haviam pedido indenizações por invalidez permanente.
A Folha ligou para Emanuele, que negou ter conhecimento das acusações e relacionamentos com as pessoas apontadas pela seguradora como sendo seus familiares.
Após falar com a reportagem, Emanuele e sua filha bloquearam o acesso às suas páginas pessoais no Facebook que continham fotos da família --sem sequelas aparentes.