Proposta ‘anticrime’ de Moro despista sobre foco principal - VEJA
Talvez você tenha ficado intrigado, assim como boa parte dos professores de Processo Penal, quando ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública) apresentou o "pacote anticrime" sem exposição de motivos, pelo menos na fase atual em que sequer foi encaminhado formalmente ao Congresso Nacional. Sem justificativa, torna-se difícil a compreensão democrática do que pretende o governo — ou justamente resida aí a tática de despiste. Normalmente, quando não se está em Estado de exceção, as normas demandam uma justificativa democrática das razões suficientes às medidas a se adotar.
Desdobrar a legítima defesa praticamente autorizando o abatimento antecipado, nos moldes do “assassinato seletivo” (targeted killing), significa matar quem gera risco potencial (real e/ou imaginado) a depender dos critérios e da probabilidade de o evento futuro ocorrer. Então, antecipando o futuro, age-se antes de os fatos ocorrerem.
Estados Unidos, Rússia e Israel reconhecem a prática da "política de ataques preventivos", assim denominada pela Suprema Corte israelense. A questão básica é que em nome do terrorismo aplica-se pena de morte indireta, sem julgamento, nem direito de defesa, até porque a ação é feita de modo planejado, dissimulado e profissional por agentes do Estado que, por sua vez, devem esperar o revide de quem se declara "inimigo".
(Wilson Dias/Agência Brasil)
O erro mais clamoroso é o de nomear os grupos do que se chama crime organizado: nomeá-los é reconhecer o adversário e declarar guerra, atitude pouco inteligente, quando quem irá morrer são os agentes de segurança (policiais militares, civis e federais) na linha de frente de ação. Os senhores da guerra precisam ter responsabilidade e entender que não se ganha no grito, nem com boas intenções. O preenchimento dos requisitos legais de qualquer movimento é pressuposto da aplicação da lei e não eventual nomenclatura que, no fundo, “batiza” e dá força ao grupo, diante do fato de se reconhecer a flagrante impotência estatal.
A possibilidade de antecipar o cumprimento da pena, independentemente de recursos, pretende esvaziar o objeto das duas ações diretas de inconstitucionalidade (43 e 44) sobre a prisão em segunda instância, com julgamento marcado para 10 de abril no Supremo Tribunal Federal, dando o “drible” legislativo. Ou seja, altera a lei para parecer que não há presunção de inocência, visando um “xeque mate” nos ministros dissidentes. O tema é constitucional em face da incidência do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”) e não de legislação infraconstitucional. Por isso deve ser deliberado pelo STF e/ou Emenda Constitucional.
Há ainda que se considerar a existência de diversos projetos em tramitação no Congresso Nacional para alteração do Código Penal, Lei de Execução Penal e Código de Processo Penal. O processo legislativo já se iniciou há anos e o governo poderia alavancar a aprovação, com as alterações que submeter, respeitando o Poder Legislativo.
Na prática, o Projeto de Lei “Anticrime” é mais uma "Operação Chama Atenção", um despiste, do que uma resposta séria, democrática e baseada em evidências. Justo o contrário, seu conteúdo tem o interesse de inverter boa parte das decisões do Supremo Tribunal Federal, operando na falácia do argumento a partir das consequências, desprezando o trajeto do devido processo legal.
A ação tática está bem delineada. Em primeiro lugar, lança um pacote recrudescedor (sonegação de benefícios para presos, vedação de progressão, restrição de liberdade), conjugado com o vulgar aumento de penas, mesmo sabendo que o sistema prisional está com o “Estado de Coisas Inconstitucional” declarado pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF 347). Assim, onde já não cabe mais ninguém, pretende-se colocar mais. O plano é mudo no tocante aos recursos necessários para o aumento da população carcerária, o que demonstra falta de seriedade, dado o impacto na Lei de Responsabilidade Fiscal da União e principalmente dos estados.
"Boa parte dos crimes no Brasil sequer é devidamente investigada, devendo-se aparelhar a Polícia Civil e Federal de meios capazes de dar conta da avalanche de inquéritos simplesmente paralisados e para os quais os instrumentos apresentados pelo ministro da Justiça pouco podem fazer"
Anote-se que lança um arremedo de plea bargaining, em que o acusado confessa crimes em troca da uma pena menor, porque não estabelece regras sobre como se processa, negocia e se fixam as penas. O aproveitamento da lógica do acordo de não persecução penal previsto na Resolução 181 e alterações, do Conselho Nacional do Ministério Público, bem como a possibilidade acordo para cumprimento para aplicação das penas entre a denúncia e o início da instrução, sem a revisão das hipóteses de desistência da ação penal, enfraquece a proposta. O projeto do novo Código de Processo Penal, em debate legislativo já iniciado, trata a questão de modo mais profundo.
Não me parece que o plea bargaining seja inconstitucional, entretanto, é necessário reorganizar todo o sistema, situação não abordada, nem justificada. De reforma parcial em reforma parcial o CPP está um monstro. Reside aí a verdadeira ação: parecer que se fez algo enquanto se poderia, seriamente, realizar aprovação de forma discutida, deliberada e adequada, com a comunidade (jurídica ou não). Aprovar sem discutir é próprio de regimes totalitários em que se nega o direito de participar efetiva ou potencialmente, porque concernidos, do processo de elaboração normativa.
Por último, não custa lembrar que boa parte dos crimes no Brasil sequer é devidamente investigada, devendo-se aparelhar a Polícia Civil e Federal de meios capazes de dar conta da avalanche de inquéritos simplesmente paralisados e para os quais os instrumentos apresentados pelo ministro da Justiça pouco podem fazer. Aliás, o foco na prevenção seria muito eficaz segundo as pesquisas realizadas no Brasil e exterior no tocante aos fatores de criminalização do que simplesmente as aumentar as penas e endurecer regimes de cumprimento de pena. Há, de fato, um déficit de criminologia na abordagem apresentada.
Por isso o projeto precisa de debate democrático e a iniciativa lança o tema ao escrutínio público e da academia. Entre avanços e retrocessos, todos queremos o melhor para o país, só resta saber se o que se quer adapta-se ao modelo constitucional. O futuro dirá.
*Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).