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Entenda por que a absolvição de deputado crítico da ditadura, há 50 anos, foi a 'gota d'água' para o AI-5

Sessão da Câmara dos Deputados negou autorização para que Márcio Moreira Alves fosse processado por injúria às Forças Armadas, em 12 de dezembro 1968

O governo do militar Artur da Costa e Silva foi surpreendido quando, em 12 de dezembro de 1968, a Câmara dos Deputados negou a autorização para processar e cassar o deputado Márcio Moreira Alves (MDB), acusado de "uso abusivo do direito de livre manifestação e pensamento e injúria e difamação das Forças Armadas". Parlamentar de primeiro mandato, ele foi absolvido no Congresso por 216 votos a 141, com 12 abstenções. Hoje, o episódio é visto como a gota d'água para a promulgação do famigerado Ato Institucional número cinco (AI-5), que inaugurou o momento mais duro de repressão às liberdades no país, dando poderes quase absolutos ao regime militar.

Moreira Alves despertara a ira do governo no dia 2 de setembro daquele ano, quando subiu à tribuna da Câmara dos Deputados para criticar o fechamento da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a invasão da polícia à Universidade de Brasília (UnB), que resultou em agressão a alunos. No discurso inflamado, Moreira Alves questionava: "Quando o Exército não será um valhacouto de torturadores?". O parlamentar ainda incentivou o boicote às comemorações do Dia da Independência e sugeriu até que as moças não saíssem mais com oficiais das Forças Armadas. 

O deputado Márcio Moreira Alves, cujo discurso irritou os militares e levou à decretação do AI-5

O discurso teve cópias reproduzidas à exaustão nos círculos militares. De acordo com o GLOBO do dia seguinte à decisão da Câmara dos Deputados, até então os militares davam como certa da tramitação do processo. Mas a Arena, partido do governo, deu 91 votos a favor de Moreira Alves. O professor e historiador Adriano de Freixo, "A ditadura em debate: Estado e sociedade nos anos de autoritarismo" (2005), entende que o racha aconteceu devido a um conceito fundamental para o Legislativo:

- A autorização para processar um deputado por um discurso proferido na tribuna mexe com algo muito importante: a inviolabilidade do parlamentar por discursos no exercício de suas funções. Isso transcende a relação entre governo e oposição e, por isto, Moreira Alves obteve muitos votos, mesmo entre os governistas. Cabe lembrar que tanto MDB quanto Arena eram partidos formados por uma maioria conservadora, mas boa parte deles ainda tinha um vestígio liberal - explica o pesquisador.

O discurso de defesa de Moreira Alves, no qual o parlamentar negou a intenção de ofender as Forças Armadas, contribuiu para a absolvição. De acordo com Freixo, mais do que o conteúdo do discurso inicial, o que mais irritou os militares foi a forma como ele foi proferido:

- O Márcio Moreira Alves era muito irônico, isso ficou claro no discurso, recheado de ênfases que deixaram os militares loucos. A gente não pode interpretar 1968 sem olhar o que estava acontecendo no Brasil. Foi um ano muito agitado, cheio de manifestações contra o governo, que se concentravam na Guanabara. O estado, aliás, elegeu um governador de oposição, o Negrão de Lima (MDB), e se tornou um reduto dos opositores. Moreira Alves representava esse movimento de renovação e foi eleito na esteira dele. Houve greves estudantis e operárias, parte da esquerda já tinha decidido pela luta armada: a não autorização para processar o deputado foi apenas a gota d'água para o AI-5 - conclui Freixo.

Para Sérgio Praça, pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (Cpdoc/FVG), o então presidente Costa e Silva buscou ao longo de 1968 uma oportunidade para implementar o AI-5, que já estava gestado pelo governo. Para ele, a insegurança do presidente foi determinante:

- O discurso pegou o Brasil em um momento em que era governado pelo ditador mais inseguro, que esperava um estopim, uma desculpa para endurecer o regime. A ideia de uma ditadura de fato, em habeas corpus e com censura prévia à imprensa, já estava com ele havia tempos. Costa e Silva passou 1968 esperando algo acontecer e sentindo o sistema político. E, naquele ano, tudo aconteceu. Lendo sobre aquele ano, é até surpreendente que o AI-5 só tenha saído só em dezembro: foi um ano de profunda convulsão social - analisa.

De acordo com o jornalista e colunista do GLOBO Elio Gaspari, no livro "A ditadura envergonhada" — volume inaugural da série "As ilusões armadas", sobre o regime militar — "a proposição era uma monstruosidade jurídica, visto que a essência da imunidade parlamentar está na inviolabilidade das palavras, opiniões e votos dos deputados e senadores".

Com o AI-5, 11 deputados federais foram cassados, entre eles o próprio Moreira Alves, que partiu para o exílio no Chile, em 1971, de onde foi para a França e, em seguida, em Portugal. Retornou ao país apenas em 1979, com a anistia. Nos anos 90. desligou-se do PMDB e se consolidou como colunista político. Teve uma coluna no GLOBO até 2008, quando se afastou devido a problemas de saúde. O ex-deputado morreu em 2009, aos 72 anos. O GLOBO

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