Os juízes e os limites para a interpretação da lei
Um juiz trabalhista esteve no centro de uma recente polêmica ao fazer uma dura crítica, em artigo publicado na Conjur, a uma decisão que condenou a churrascaria Fogo de Chão a reintegrar os trabalhadores demitidos e pagar uma multa de R$ 17 milhões, em uma ação ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho. Em apertada síntese, o juiz criticou a postura de juízes que utilizam princípios constitucionais demasiadamente genéricos para se interpretar ou se desconsiderar a lei, com o fim de atender suas próprias convicções pessoais.
De certo modo, essa polêmica ilustra uma preocupação de boa parte dos juristas, de que princípios constitucionais dissociados de uma regra legal, clara e escrita, poderiam se apresentar como razões morais transvestidas de norma jurídica, capazes de serem utilizadas para defesa de um capricho, ou de uma convicção política.
A ideia deste texto não é defender nem refutar a crítica feita pelo referido juiz à solução dada ao caso "Ministério Público do Trabalho versus Churrascaria Fogo de Chão", mas responder à seguinte pergunta central: em um sistema de regras e princípios jurídicos, existem limites seguros para aplicação da lei?
Não é de hoje que a comunidade jurídica inteira, com poucas exceções, sabe que a interpretação puramente lógica-dedutiva da lei escrita pouco pode auxiliar o juiz no julgamento dos casos lhe apresentados. Afinal, a interpretação do Direito perpassa pela solução de problemas semânticos, os quais nem sempre podem ser resolvidos por meio de operações puramente lógicas, sob pena de se chegar a constatações absurdas ou de se deparar com questões racionalmente indecidíveis.
Temos como exemplo a ADI 4.277/DF, julgada pelo STF, em que foi questionado se a união de pessoas do mesmo sexo deveria receber o status de entidade familiar e, consequentemente, se deveria receber a mesma proteção garantida às demais famílias formadas por casais heteroafetivos. O procurador-Geral da República, autor da referida ação, sustentou a necessidade de qualificar juridicamente a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, desde que essa união fosse pública, contínua e duradoura. Em seu pedido, buscava uma melhor interpretação do artigo 1.723 do Código Civil, que, ao regulamentar o §3º do artigo 226 da Constituição, tinha a seguinte redação: "É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família".
Embora a Constituição trouxesse um dispositivo que garantisse especial proteção à união estável, a palavra "família" ou a expressão "homem e mulher" remetiam a tradicionais instâncias religiosas e, consequentemente, traziam inúmeros questionamentos morais quanto à fixação de seus significados. Portanto, uma interpretação literal do artigo 1.723 do Código Civil permitiria chegar a uma conclusão descompassada com o que se pretende em um estado garantidor da igualdade e dignidade humana. Entretanto, não foi essa a solução dada pelo STF ao caso, posto que considerou que a Constituição também protegia casais homoafetivos e, portanto, tal condição deveria ser considerada ao se interpretar o artigo 1.723 do Código Civil.
A Reclamação 6.568 ED/SP, também julgada pelo STF, pode, de igual modo, ilustrar o que quero dizer. Restou decidido no curso dessa ação que os policiais civis do estado de São Paulo não teriam o direito de fazer greve, contrariando, pelo menos em tese, o texto previsto no inciso VII, do artigo 37, da Constituição. Na fundamentação do voto vencedor, o ministro Eros Grau (o mesmo que escreveu a obra "Por Que Tenho Medo dos Juízes"), concluiu que, muito embora os servidores públicos fossem, seguramente, titulares do direito de greve, a manutenção da coesão social exigiria que alguns serviços públicos fossem prestados plenamente, em sua totalidade, fato que excepcionaria tal direito aos policias civis. Destacou o ministro, em seu voto, que da Constituição seriam extraídos sentidos normativos para além da leitura comportada e esteticamente ordenada de palavra por palavra.
O que esses dois casos se relacionam ao debate que se pretende neste texto? Respondo. A interpretação literal da lei escrita poderia resultar em decisões judiciais incompatíveis com o estado de direito e com os objetivos de nossa República, motivo pelo qual é imperioso o reconhecimento da necessidade de se aplicar a lei a partir dos contornos pragmáticos exigidos constitucionalmente, os quais estabelecidos nos princípios e objetivos definidos na Constituição.
Assim, ao aplicar o Direito ao caso concreto, a principal tarefa do juiz não deveria ser apenas responder à indagação "o que significa determinada lei?", mas, sobretudo, responder "o que devemos fazer diante de determinada lei?". Afinal, o Direito lida com problemas da sociedade e por isso a interpretação jurídica não pode ser reduzida a um processo meramente mecânico, fundado exclusivamente em procedimentos silogísticos, em detrimento de uma interpretação pragmática que atenda aos objetivos estabelecidos pela Constituição. A decisão do juiz não deve ser motivada exclusivamente pela simples análise crua da letra da lei, mas deve cuidar das implicações que determinada norma ou conceito normativo produz na sociedade ou sobre quais são as razões de sua existência e sua compatibilidade com os valores e liberdades democráticas.
Não é que a Constituição autorize uma interpretação livre da lei ao ponto de se criar juízes descompromissados com determinados critérios legalmente estabelecidos para aplicação da norma jurídica ao caso concreto. Contudo, é óbvio que o âmbito de aplicação de um dispositivo normativo depende de seu contexto, de sua utilização, de sua finalidade e de sua possibilidade de interpretação conforme os objetivos e valores insculpidos na Constituição. Afinal, a adequação da legislação ordinária aos princípios constitucionais não é uma opção do julgador, mas uma obrigação decorrente do próprio sistema democrático de controle de freios e contrapesos, que impõe uma atuação do Poder Judiciário frente à um possível desvio constitucional no exercício da função legislativa.
Por fim, ressalto que a preocupação dos juristas com a garantia de integridade, previsibilidade e objetividade das decisões judiciais acha solução no princípio da autonomia semântica da lei escrita. Esse princípio informa que os textos legais têm uma estrutura sintática (gramatical) e semântica (significativa) que impõe limites à atividade interpretativa do juiz, impedindo, assim, uma total dissociação interpretativa do que no texto legal se pretende. Contudo, a dimensão pragmática da atividade interpretativa permite com que o texto crie uma autonomia significativa frente ao seu autor (legislador), conferindo, portanto, ao juiz, a possibilidade de "construir" um "bom" significado para o texto, que se compatibilize com os limites a ele impostos e com o que se pretende constitucionalmente.
Ronaldo Brito é mestre em Direito pela PUC/MG e juiz do Trabalho no TRT-SP.
Revista Consultor Jurídico, 28 de março de 2021, 14h21
Por que mesmo com medidas protetivas mulheres são mortas por seus ex-companheiros?
Laura Suprani* O GLOBO
RIO - Entre os mecanismos previstos pela Lei Maria da Penha para a proteção de mulheres vítimas de violência doméstica e de gênero estão as medidas protetivas de urgência. De acordo com a legislação, após uma denúncia, a Justiça poderá determinar o afastamento do agressor de casa e a restrição do contato com a mulher agredida e seus familiares. O descumprimento dessas medidas é crime e pode levar à prisão. Mas não são poucos os casos de mulheres assassinadas por seus ex-companheiros, apesar de terem medidas protetivas. Por que isso acontece?
Impacto familiar:Feminicídios fazem 2 mil órfãos por ano no Brasil. Por que esse problema continua invisível?
— A estrutura patriarcal, que centraliza o poder na figura do homem em detrimento do reconhecimento do lugar de poder da mulher na sociedade, chancela a prática de múltiplas violências. É como se houvesse uma permissão social para que a mulher fosse violada, agredida, subjugada, uma espécie de cultura do ódio à mulher — explica Izabella Borges, advogada criminal.
Em todo o país, os números de agressões contra a mulher cresceram durante a pandemia. Os canais de atendimento mantidos pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, Ligue 180 e Disque 100, receberam uma denúncia a cada cinco minutos em 2020. A 14ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra um aumento de 1,9% dos feminicídios no primeiro semestre de 2020, em comparação com o mesmo período de 2019. O Conselho Nacional de Justiça divulgou que 403 mil mulheres pediram algum tipo de proteção contra os seus ex-companheiros em 2020. Entre os motivos para os pedidos de medidas protetivas estavam agressões físicas, verbais e tentativas de feminicídio.
— Muitas vezes, esse homem pratica essa violência para exercer seu poder patriarcal. É um recado que ele passa para a sociedade e para a mulher. Nesse contexto, não é a determinação de um juiz que vai interferir na vontade desse homem de exercer esse poder. Muitos são presos, mas ameaçam suas ex-companheiras afirmando: “quando eu sair eu te mato” — explica Renata Bravo dos Santos, mestra em Direitos e Garantias Fundamentais e assessora jurídica no Ministério Público do Espírito Santo, para quem determinados homens são chancelados para sairem impunes de atos de violência contra a mulher. — Está prevista em lei a proibição de matar, cometer agressões e abuso sexual. O agressor sabe que são crimes, mas esse conhecimento não inviabiliza a prática.
A cultura machista é tão forte na sociedade brasileira que a violência contra a mulher é naturalizada. Quando a mulher rompe os papéis tradicionais de gênero, o homem se sente no direito de paralisá-la, de silenciá-la. Ele não consegue entender a mulher em um espaço de liberdade, fora da subalternização. Por isso, não respeita a medida protetiva, que, coloca a mulher longe de seu domínio.
— Temos um problema cultural e social, a partir do qual homens e mulheres aprendem desde muito cedo o que são papéis de gênero.Quando uma mulher rompe com esses comportamentos, esse homem acredita que tem o direito de cometer uma violência contra ela — explica Juliana Martins, coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. — Precisamos pensar e entender que esse trabalho de enfrentamento à violência contra a mulher precisa de uma rede bem articulada. Para muitas, a medida protetiva não basta.
Para a juíza Adriana Ramos de Mello é preciso pensar em prevenção e investir em política públicas:
— O machismo e o patriarcado ainda são estruturais. Temos que trabalhar com a prevenção à violência de gênero e com mudanças na cultura da violência, mas não há investimento em políticas públicas do tipo. As mulheres que sofrem violência têm medo de denunciar, ou de seguir com as denúncias, e muitas se isolam. O isolamento, o medo e a vergonha de buscar ajuda e de comparecer aos órgãos oficiais fazem parte desse processo de violência que muitas mulheres vivem — explica.
Na véspera do Natal de 2020, o feminicídio da juíza Viviane do Amaral Arronenzi chocou o país. Ela foi morta pela ex-marido, Paulo José Arronenzi, a facadas, na frente das três filhas do casal. Ele não aceitava a separação. Ela pediu medida protetiva e uma escolta ao Tribunal de Justiça do Rio. Um mês antes do crime, dispensou a escolta. Em fevereiro deste ano, Ariane de Aguiar Araújo foi morta pelo companheiro, Rafael Washington Alves da Silva. Ela solicitou medida protetiva um ano antes, quando foi agredida por ele, e chegou a mudar de cidade. Mas Ariane foi morta na mesma semana em que reatou o relacionamento.
Como garantir que a medida protetiva está sendo cumprida e, mais: como fazer a mulher entender que, muitas vezes, reatar um relacionamento é correr risco de morte?
Inovação:Pandemia acelerou uso da tecnologia no combate à violência contra a mulher
Para Juliana Martins, o Estado não pode acreditar que as medidas protetivas funcionam sozinhas:
É preciso que haja fiscalização e acompanhamento dessas medidas de fato, e não apenas confiar que, por si só, elas irão garantir a segurança dessas mulheres. Estados e municípios precisam ter como prioridade a articulação de uma rede de proteção mais ampla, com a participação de diferentes setores aos quais a vítima possa recorrer. Além disso, essas medidas precisam ser concedidas rapidamente, de forma a possibilitar que outras ações sejam adotadas, como o acolhimento em abrigos — diz.
A juíza Adriana Ramos de Mello lembra que a Lei Maria da Penha prevê medidas de prevenção e de educação:
— Estamos investindo apenas na repressão quando temos que investir também na prevenção e na assistência às mulheres; com campanhas de conscientização sobre violência, alteração dos currículos escolares para inclusão de conteúdo sobre igualdade de gênero, respeito às mulheres e direitos humanos nas escolas e faculdades. Isso está previsto inclusive no artigo 8 da lei Maria da Penha, que ainda não foi cumprido integralmente — ensina.
A advogada Izabella Borges chama atenção para a necessidade de mudar estruturas, inclusive educando as equipes que prestam assistência a mulher:
— As medidas protetivas de urgência são extremamente úteis, mas é preciso que haja uma mudança profunda em nossas estruturas. O reduzido número de agentes públicos que atuam na defesa da mulher, além do despreparo desses funcionários, também são causas para o crescimento desse número.
Violência contra a mulher:Companheiro é autor de 88% dos feminicídios no Brasil
Renata Bravo dos Santos explica que é preciso entender que a violência contra a mulher não é uma questão isolada. Ela envolve também saúde, estrutura familiar e educação, entre outros aspectos da vida da mulher e da sociedade.
— O poder público precisa olhar para esse problema com uma lente mais ampla. E, quando necessário, poderemos oferecer a essa mulher uma resposta melhor, criando mecanismos de verificação para garantir o cumprimento das medidas.
* estagiária, sob supervisão de Renata Izaal
TCU vai alertar Bolsonaro sobre risco de crime fiscal se Orçamento de 2021 for sancionado
Geralda Doca, Eliane Oliveira, Henrique Gomes Batista e Fernanda Trisotto / O GLOBO
BRASÍLIA E SÃO PAULO - O Tribunal de Contas da União (TCU) deve aprovar um parecer para alertar o presidente Jair Bolsonaro sobre crime de responsabilidade fiscal, caso ele sancione o projeto de Orçamento para 2021 tal como foi aprovado pelo Congresso. O ideal seria vetar trechos do texto. Segundo um integrante da Corte, os parlamentares têm inviolabilidade no discurso e no voto e, por isso, podem aprovar uma peça orçamentária irreal. Contudo, o chefe do Executivo precisa zelar pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e, sendo assim, ele terá de avaliar o texto aprovado à luz desse fato para não ser acusado de crime fiscal.
Orçamento:‘Esta é a primeira grande pedalada do atual período’, diz Maílson da Nóbrega
Um grupo de deputados, que já enviou uma carta alertando o presidente sobre o nó fiscal do Orçamento, prepara-se para acionar o TCU.
— Estamos estudando essa matéria para poder recorrer ao TCU e aprofundar os dados do Orçamento. Estou esperando o retorno dos técnicos para podermos fazer uma representação — explicou o deputado Vinicius Poit (SP), líder do Novo.
O recurso dos parlamentares deve ser avaliado no TCU pela Secretaria de Macroavaliação Governamental, que julga as contas do presidente da República. Foi este órgão técnico que baseou a condenação da gestão Dilma Rousseff pelas chamadas pedaladas fiscais. Esse parecer técnico deve dar sustentação à decisão a ser tomadas pelos ministros no plenário da Corte.
Diante da repercussão negativa sobre o Orçamento aprovado pelo Congresso, que cortou despesas obrigatórias deste ano para aumentar as emendas de interesse dos parlamentares, é provável que Bolsonaro aguarde o parecer do TCU para sancionar o projeto.
Equipe econômica:Guedes vai a Bolsonaro após Orçamento 'inexequível'
A avaliação de integrantes do governo que acompanham as negociações é que não há uma solução simples. A peça não se sustenta da forma como foi aprovada, e resolver o problema demanda cooperação entre Executivo e Congresso.
O Ministério da Economia diz que ainda aguarda o Autógrafo da Lei Orçamentária, a ser encaminhado pelo Congresso, para conhecer oficialmente os valores e termos finais aprovados e, então, discutir alternativas para solucionar os problemas do Orçamento.
As possibilidades analisadas são vetos em trechos do Orçamento, combinados com a apresentação de projetos para remanejar dotações e a aprovação de créditos suplementares. Mas os vetos terão de ser analisados de forma cautelosa, porque, devido à redação do texto pode ser impossível barrar parcialmente a dotação orçamentária para algum órgão, por exemplo. Somente com uma construção nesse formato se poderia evitar um contingenciamento que pode ser da casa de R$ 40 bilhões.
O remanejamento dos recursos via um relatório extemporâneo de receitas e despesas também tem entraves. Essa revisão só é possível se houver descumprimento da meta fiscal, o que ainda não ocorreu. A equipe econômica também busca opções para corte de recursos, mas estas são restritas. Obter R$ 20 bilhões nesse processo tornaria a situação menos penosa, mas ainda difícil.
Presidente do IBGE: 'Saio por motivo pessoal, fico até meu substituto chegar', diz Susana Guerra
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), em entrevista ontem à GloboNews, mostrou disposição para negociar:
— Não há nenhuma ilegalidade, nenhuma inconstitucionalidade no parecer do relator Márcio Bittar. Eventual distorção que haja é plenamente possível de ser corrigida, e nós não mediremos esforços para poder corrigir o que precisar ser feito.
O governo tem sua parcela de responsabilidade ao ter se omitido e não enviado uma peça para atualizar os valores dos benefícios vinculados à inflação. Quando fez a proposta, considerou uma inflação de 2%, mas o INPC fechou 2020 em 5,26%. Só isso já gerou um buraco de R$ 8,5 bilhões na Previdência, agravado pelo corte de R$ 13,5 bilhões feito pelo relator, senador Márcio Bittar (MDB-AC).
‘Teto é nossa âncora’
Para Margarida Gutierrez, professora da UFRJ, este Orçamento pode comprometer a recuperação da economia e a geração de emprego nos próximos anos. Na prática, diz, ele significa o fim do teto de gastos, o que levaria o dólar a superar os R$ 6:
— Derrubar o teto é o pior que pode acontecer com a gente, é a nossa única âncora fiscal. A aprovação do Orçamento desta maneira é um golpe comparável às “pautas-bomba” que a Câmara fez na gestão de Eduardo Cunha no governo de Dilma Rousseff.
Ela alerta que o Orçamento, se executado, pode levar à paralisação total do governo, o shutdown, além de representar crime de responsabilidade fiscal.
— Deixar restos a pagar de um ano para outro, usar créditos extraordinários para despesas que não são extraordinárias, são subterfúgios para furar o teto, e isso reduz a credibilidade do governo — alerta o economista-sênior da Prospectiva Consultoria, Adriano Laureno.
Já o especialista em contas públicas Raul Velloso defende discutir o teto de gastos, já que os parlamentares do centrão não devem voltar atrás nas emendas:
— O governo vendeu a alma para o centrão e agora não sabe o que fazer.
O Orçamento aprovado prevê R$ 26 bilhões a mais para emendas parlamentares. Para isso, foram cortados recursos de áreas como a Previdência e gastos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) com seguro-desemprego e abono salarial.
Além disso, algumas pastas tiveram incrementos polpudos. Um dos maiores acréscimos foi do Ministério do Desenvolvimento Regional, comandado por Rogério Marinho: passou de R$ 2,4 bilhões para R$ 16 bilhões.
Quando falou sobre as dotações das pastas, o relator do orçamento, senador Márcio Bittar (MDB-AC), atrelou o direcionamento dos recursos para essas pastas à realização de obras necessárias para o país e que teve de tomar decisões difíceis por causa do cenário pandêmico. As duas pastas ficaram com orçamentos superiores ao da Educação (que pulou de R$ 2,1 bilhões para R$ 4,1 bilhões) e Saúde (foi de R$ 1,98 bilhão para R$ 4 bilhões).
Alvo de críticas, o orçamento da Defesa também aumentou: passou de R$ 8,2 bilhões na proposta original para R$ 8,8 bilhões. Nesse caso, destaca um integrante do governo, há de se considerar gastos já contratados com a aquisição do submarino nuclear e de caças Gripen. As compras já foram feitas e a pasta não pode dar um calote.
E a corrupção? - folha de sp
A anulação dos processos movidos contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fez desmoronar parte importante do edifício erguido por juízes e procuradores à frente da Lava Jato nos últimos anos.
Passados dois meses desde a dissolução da força-tarefa responsável pelas investigações da operação no Paraná, lá se foram os troféus mais vistosos da sua coleção, as duas condenações impostas ao líder petista pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.
A despeito dos resultados históricos obtidos na busca de punições rigorosas para políticos corruptos e empresários corruptores, há muito se notam abusos e heterodoxias cometidos por seus integrantes e pelo ex-juiz Sergio Moro para atingir seus objetivos.
O alcance das decisões do Supremo Tribunal Federal no caso de Lula ainda depende de uma palavra final do plenário sobre a transferência das ações para a Justiça Federal do Distrito Federal, mas é possível que outros acusados colham benefícios também.
Também preocupante, entretanto, é que a reprovação aos desvios da Lava Jato não tenha sido acompanhada até agora de medidas que aperfeiçoem os mecanismos de controle desenvolvidos a partir da redemocratização do país para enfrentar a corrupção.
Pelo contrário, o desmonte da operação ocorre num ambiente em que se multiplicam de maneira inquietante as iniciativas para enfraquecer as instituições encarregadas de coibir os malfeitos.
A pretexto de impor bem-vinda disciplina ao compartilhamento de informações financeiras, decisões judiciais vêm restringindo o repasse de dados e inibindo a atuação de órgãos cuja cooperação é essencial para os investigadores.
Motivação semelhante parece inspirar mudanças em discussão no Congresso, onde estão sendo revistas as leis que punem a lavagem de dinheiro e os atos de improbidade administrativa.
Ao liquidar a força-tarefa de Curitiba, o procurador-geral da República, Augusto Aras, desidratou o grupo encarregado de dar continuidade a dezenas de inquéritos e ações penais, deixando-o com recursos exíguos para a tarefa.
Caiu no esquecimento a promessa de criação de um grupo especializado no combate à corrupção, que disseminasse o conhecimento acumulado pela Lava Jato e coordenasse melhor os esforços para desvendar casos complexos.
Note-se ainda a condescendência com o que o procurador-geral trata o presidente Jair Bolsonaro, que o nomeou para o cargo e se movimenta de maneira constante em busca de proteção para os filhos contra investigações embaraçosas.
Encerrado o ciclo da Lava Jato, é preciso assegurar que o aprendizado proporcionado pelos erros e pelos acertos da operação contribua para fortalecer as instituições de controle, e não para esvaziá-las.
Política e irracionalidade -
29 de março de 2021 | 03h00
O cenário nacional é de tempestade perfeita: descontrole fiscal, baixo crescimento, aumento da inflação, alta dos juros, aproximadamente 14 milhões de desempregados, sem falar nos subocupados, no medo generalizado da covid-19 e de uma cifra de mortes de mais de 300 mil pessoas, em crescimento acelerado. Para coroar o quadro, um presidente descontrolado e irresponsável, que nem ideia tem do abismo em que estamos entrando. E como desgraça pouco é bobagem, a alternativa política que se está desenhando, graças ao Supremo Tribunal, é o retorno de Lula à cena política.
A dificuldade de compreensão do presidente Bolsonaro reside em que seu comportamento, suas ações e declarações não se orientam pela normalidade, pela racionalidade que julgaríamos comum em atitudes políticas. Ele se pauta pela irracionalidade, pela destruição e pela morte. Sua previsibilidade só se dá se seguirmos esses critérios, e não os da razão, do equacionamento da violência (ataques e agressões), da vida. Ele tem uma tendência incontida, diria incontrolável, a seguir comportamentos destruidores, até de acordos por ele mesmo celebrados, ainda que este rompimento lhe seja prejudicial em médio e longo prazos.
Sua estrutura psicológica se organiza em torno de seu núcleo familiar, a saber, seus filhos, que lhe conferem apoio e união, sempre e quando, evidentemente, seja reconhecido como o pai e o mestre. Sua coesão interna na destruição e na morte está baseada na consideração do outro, qualquer que seja, como estranho e, por via de consequência, como um inimigo potencial, seja ele fático ou imaginário. Isso se traduz igualmente pela instabilidade na consideração dos “amigos”, sempre provisórios e transitórios, tratados com desconfiança. Foram vários os seus “amigos” que passaram a ser “inimigos”. Eis o que o faz sempre privilegiar os filhos, por mais que eles possam estar emaranhados em ilícitos ou simples idiotices, que terminam tendo repercussão nacional.
Outra versão de seu comportamento irracional consiste em seu completo desprezo pelo outro, em seu sentido genérico, aplicável não apenas aos de seu círculo político, mas aos brasileiros em geral. Sempre tratou as vítimas da pandemia sem nenhuma compaixão, utilizando a “ironia” como se fosse uma gracinha. Seus impropérios foram múltiplos. As pessoas adoecem, sofrem e morrem sem uma palavra sequer de apoio do representante máximo do País. Até hoje não visitou nenhum hospital, não viu a morte com os próprios olhos, restringiu-se ao seu gozo distante. Um presidente normal mostraria sentimentos morais, exibiria compaixão, emprestaria palavras de apoio e solidariedade.
Logo, ao bem público é reservado uma posição completamente secundária, pois o mais importante consiste na proteção da família e em sua permanência no poder, apostando na eleição e flertando com o desrespeito à ordem institucional. O presidente e sua família agarram-se de todas as maneiras à preservação dos seus interesses e à conservação de sua coesão psicológica. Sua única política conhecida é a do ataque, por mais, reitero, que isso possa ser-lhes prejudicial em longo prazo. A satisfação é tirada do projeto imediato, de pequenas conquistas e do aplauso grotesco de seus apoiadores fanatizados. Não entra em linha de consideração o que é melhor para o País, deixando situação econômica e social se desagregar cada vez mais. O projeto, vendido nas eleições, de uma pauta liberal já está completamente “vendido”, não mais corresponde aos seus interesses familiares. Foi apenas uma encenação eleitoral.
O caso mais escandaloso dessa política da morte é o tratamento dado à pandemia. As cenas são aterradoras. O tratamento precoce proposto, desautorizado em todo o mundo, não defendido por nenhuma comunidade ou instituição científica no planeta, é apresentado aqui como poção mágica. Trata-se de campanha sistemática contra a vacina, traduzida por postergações enormes, apesar de que, agora, por queda abrupta de popularidade ameaçando seu projeto de poder, ela começa a ser revertida. E o é pela impostura, pois a vacina de aplicação preponderante e amplamente majoritária, a Coronavac, é toda ela obra do governador João Doria. Aliás, não faltaram discursos presidenciais contra a “vacina chinesa”. Isso para não falar na ausência de leitos em unidades de tratamento intensivo, na falta de oxigênio, em atrasos, erros de envio, e assim por diante, além do boicote aos governadores. Fosse uma política racional, nada disso teria acontecido, só a irracionalidade explica a conduta presidencial e governamental.
De nada adianta agora fazer uma encenação de união nacional, na qual nem os participantes acreditam. Criar um comitê é ao mesmo tempo nada pretender fazer, quando mais não seja pelo fato de seu objetivo ser somente compartilhar a sua irresponsabilidade. Em vez de uma escolha técnica para Ministro da Saúde, optou novamente por uma opção familiar, multiplicando ainda mais os conflitos políticos. Pode dar certo um governo que se caracteriza pela ausência de comportamentos racionais?
PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFGRS. E-MAIL: O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.
LULA, CIRO, DORIA, MORO E MAIS: PESQUISA APONTA ONDE OS POSSÍVEIS PRESIDENCIÁVEIS TÊM MAIOR CHANCE DE VOTO
Bernardo Mello / epoca
RIO - Enquanto o atual presidente Jair Bolsonaro e o ex-ministro da Justiça Sergio Moro são citados como opção de voto por mais de 40% dos moradores da região Sul, cerca de um terço dos eleitores do Nordeste admite votar em Ciro Gomes (PDT) e Fernando Haddad (PT) na eleição presidencial de 2022 -- embora, neste caso, o líder em preferência seja o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cujas condenações na Lava Jato foram anuladas nesta segunda (8). Estes são alguns dos dados obtidos em pesquisa realizada no fim de fevereiro pelo IPEC (Inteligência, Pesquisa e Consultoria), instituto formado por antigos executivos do Ibope. A margem de erro é de dois pontos.
O levantamento mediu a aprovação atual de dez possíveis presidenciáveis em todo o país. Nele, o apresentador de TV Luciano Huck, que nunca concorreu a um cargo eletivo, aparece com maior potencial de voto do que nomes com bagagem política, como a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva (Rede), o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM). Entre os nomes pesquisados, Guilherme Boulos (PSOL) foi o menos citado como opção de voto, com 10%.
Diferentemente de uma pesquisa de intenção de voto, o IPEC não pediu aos entrevistados que escolhessem um candidato de sua preferência, mas sim que respondessem caso a caso se poderiam votar ou não nos possíveis presidenciáveis. Lula foi citado como opção de voto por 50% dos eleitores: 34% disseram que “com certeza votariam” no ex-presidente, caso possa concorrer em 2022, e outros 16% afirmaram que “poderiam votar” nele. Já o percentual de rejeição a Lula, de 44%, é o menor da pesquisa -- quem mais se aproxima deste número é Mandetta, com 45%.
À época da realização da pesquisa, Lula estava inelegível, de acordo com a Lei da Ficha Limpa, por ter sido condenado em segunda instância pela Lava-Jato. Nesta segunda-feira, porém, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin anulou as condenações, o que torna o ex-presidente elegível novamente. Antes disso, Lula já havia apontado Haddad, ex-ministro da Educação e candidato à Presidência na última eleição, como presidenciável novamente em 2022. Haddad tem 27% de potencial de voto, pouco mais da metade do índice dos que admitem votar em Lula. Ciro, que também participou da gestão do ex-presidente, mas tem criticado o petista recentemente, está no mesmo patamar de Haddad, com 25%.
Rejeição em alta
Luciano Huck, citado como opção de voto por 28% dos eleitores, é lembrado especialmente pelos eleitores mais pobres, com renda mensal de até dois salários mínimos, e também entre os mais jovens, grupo no qual 35% admitem a possibilidade de votar no apresentador -- que ainda não decidiu se entrará de vez na política. Desconhecido para apenas 13% dos entrevistados, segundo a pesquisa, Huck enfrenta suas maiores resistências entre homens (64%), entre os que fizeram ensino superior e também naqueles com maiores rendas. Na faixa mais rica, por exemplo, 70% dizem não votar em Huck.
A distribuição da rejeição é similar à encontrada por Doria, rechaçado por quase dois em cada três eleitores dos grupos com maior escolaridade, mais ricos ou do sexo masculino. No caso do governador de São Paulo, contudo, as rejeições altas aparecem justamente nos segmentos em que ele teria, em tese, maior chance de voto de acordo com a pesquisa. No Sudeste, por exemplo, apesar de 17% afirmarem que poderiam votar no tucano, 63% dizem que não votariam de jeito nenhum.
De modo geral, 15% dos eleitores brasileiros admitem optar por Doria na próxima eleição presidencial, enquanto 25% dizem ainda não conhecê-lo “o suficiente para opinar”. Mandetta, que aparece com o mesmo potencial de voto de Doria, é considerado desconhecido por 40% dos eleitores.
Doria, Huck e Bolsonaro estão em patamares semelhantes de rejeição: beiram os 60%, considerando a margem de erro. Nenhum deles, no entanto, lidera o ranking de presidenciável mais rechaçado atualmente. O posto cabe a Marina Silva, que é descartada como opção de voto por 59% dos entrevistados, número que pode chegar a 61% com a margem de erro. Votar em Marina é tido como possibilidade para 21% dos entrevistados.
Preferência evangélica
Segundo a pesquisa, 38% dos eleitores admitem a chance de votar pela reeleição de Bolsonaro. Em relação a Moro, o índice é de 31%. Rompidos em abril de 2020, quando o então ministro da Justiça deixou o governo acusando o presidente de tentar interferir na Polícia Federal, Moro e Bolsonaro têm perfis distintos de apoio, apesar do desempenho semelhante no Sul do país. O ex-juiz da Lava-Jato, que condenou Lula, é lembrado como opção de voto principalmente por eleitores mais ricos e mais escolarizados, onde supera os 36% de preferência. São esses os segmentos, por sinal, que mais rejeitam o petista, num patamar superior a 50%.
Bolsonaro, por sua vez, é o mais lembrado pelos evangélicos: 53% consideram votar no atual presidente. Embora 42% digam não votar no presidente de jeito nenhum, trata-se ainda assim da menor rejeição apresentada pelo segmento.
Com rejeição acima de 60% entre os mais escolarizados, os mais jovens (até 24 anos de idade) e as mulheres, Bolsonaro tem seu pior desempenho entre os nordestinos: 66% dizem não votar “de jeito nenhum” no atual presidente. É nesta região que Lula aparece com mais força, seguido de longe por concorrentes associados ao mesmo campo ideológico. Entre os eleitores do Nordeste, 71% dizem ao menos que poderiam votar em Lula. Com Haddad e Ciro, o número cai para 35% e 34%, respectivamente. Bolsonaro, apesar da alta rejeição, é citado como opção de voto por 31% dos nordestinos.
O IPEC entrevistou presencialmente 2.002 pessoas em 143 municípios, entre os dias 19 e 23 de fevereiro. O nível de confiança apontado pela pesquisa é de 95%.