Política e irracionalidade -
29 de março de 2021 | 03h00
O cenário nacional é de tempestade perfeita: descontrole fiscal, baixo crescimento, aumento da inflação, alta dos juros, aproximadamente 14 milhões de desempregados, sem falar nos subocupados, no medo generalizado da covid-19 e de uma cifra de mortes de mais de 300 mil pessoas, em crescimento acelerado. Para coroar o quadro, um presidente descontrolado e irresponsável, que nem ideia tem do abismo em que estamos entrando. E como desgraça pouco é bobagem, a alternativa política que se está desenhando, graças ao Supremo Tribunal, é o retorno de Lula à cena política.
A dificuldade de compreensão do presidente Bolsonaro reside em que seu comportamento, suas ações e declarações não se orientam pela normalidade, pela racionalidade que julgaríamos comum em atitudes políticas. Ele se pauta pela irracionalidade, pela destruição e pela morte. Sua previsibilidade só se dá se seguirmos esses critérios, e não os da razão, do equacionamento da violência (ataques e agressões), da vida. Ele tem uma tendência incontida, diria incontrolável, a seguir comportamentos destruidores, até de acordos por ele mesmo celebrados, ainda que este rompimento lhe seja prejudicial em médio e longo prazos.
Sua estrutura psicológica se organiza em torno de seu núcleo familiar, a saber, seus filhos, que lhe conferem apoio e união, sempre e quando, evidentemente, seja reconhecido como o pai e o mestre. Sua coesão interna na destruição e na morte está baseada na consideração do outro, qualquer que seja, como estranho e, por via de consequência, como um inimigo potencial, seja ele fático ou imaginário. Isso se traduz igualmente pela instabilidade na consideração dos “amigos”, sempre provisórios e transitórios, tratados com desconfiança. Foram vários os seus “amigos” que passaram a ser “inimigos”. Eis o que o faz sempre privilegiar os filhos, por mais que eles possam estar emaranhados em ilícitos ou simples idiotices, que terminam tendo repercussão nacional.
Outra versão de seu comportamento irracional consiste em seu completo desprezo pelo outro, em seu sentido genérico, aplicável não apenas aos de seu círculo político, mas aos brasileiros em geral. Sempre tratou as vítimas da pandemia sem nenhuma compaixão, utilizando a “ironia” como se fosse uma gracinha. Seus impropérios foram múltiplos. As pessoas adoecem, sofrem e morrem sem uma palavra sequer de apoio do representante máximo do País. Até hoje não visitou nenhum hospital, não viu a morte com os próprios olhos, restringiu-se ao seu gozo distante. Um presidente normal mostraria sentimentos morais, exibiria compaixão, emprestaria palavras de apoio e solidariedade.
Logo, ao bem público é reservado uma posição completamente secundária, pois o mais importante consiste na proteção da família e em sua permanência no poder, apostando na eleição e flertando com o desrespeito à ordem institucional. O presidente e sua família agarram-se de todas as maneiras à preservação dos seus interesses e à conservação de sua coesão psicológica. Sua única política conhecida é a do ataque, por mais, reitero, que isso possa ser-lhes prejudicial em longo prazo. A satisfação é tirada do projeto imediato, de pequenas conquistas e do aplauso grotesco de seus apoiadores fanatizados. Não entra em linha de consideração o que é melhor para o País, deixando situação econômica e social se desagregar cada vez mais. O projeto, vendido nas eleições, de uma pauta liberal já está completamente “vendido”, não mais corresponde aos seus interesses familiares. Foi apenas uma encenação eleitoral.
O caso mais escandaloso dessa política da morte é o tratamento dado à pandemia. As cenas são aterradoras. O tratamento precoce proposto, desautorizado em todo o mundo, não defendido por nenhuma comunidade ou instituição científica no planeta, é apresentado aqui como poção mágica. Trata-se de campanha sistemática contra a vacina, traduzida por postergações enormes, apesar de que, agora, por queda abrupta de popularidade ameaçando seu projeto de poder, ela começa a ser revertida. E o é pela impostura, pois a vacina de aplicação preponderante e amplamente majoritária, a Coronavac, é toda ela obra do governador João Doria. Aliás, não faltaram discursos presidenciais contra a “vacina chinesa”. Isso para não falar na ausência de leitos em unidades de tratamento intensivo, na falta de oxigênio, em atrasos, erros de envio, e assim por diante, além do boicote aos governadores. Fosse uma política racional, nada disso teria acontecido, só a irracionalidade explica a conduta presidencial e governamental.
De nada adianta agora fazer uma encenação de união nacional, na qual nem os participantes acreditam. Criar um comitê é ao mesmo tempo nada pretender fazer, quando mais não seja pelo fato de seu objetivo ser somente compartilhar a sua irresponsabilidade. Em vez de uma escolha técnica para Ministro da Saúde, optou novamente por uma opção familiar, multiplicando ainda mais os conflitos políticos. Pode dar certo um governo que se caracteriza pela ausência de comportamentos racionais?
PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFGRS. E-MAIL: O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.
LULA, CIRO, DORIA, MORO E MAIS: PESQUISA APONTA ONDE OS POSSÍVEIS PRESIDENCIÁVEIS TÊM MAIOR CHANCE DE VOTO
Bernardo Mello / epoca
RIO - Enquanto o atual presidente Jair Bolsonaro e o ex-ministro da Justiça Sergio Moro são citados como opção de voto por mais de 40% dos moradores da região Sul, cerca de um terço dos eleitores do Nordeste admite votar em Ciro Gomes (PDT) e Fernando Haddad (PT) na eleição presidencial de 2022 -- embora, neste caso, o líder em preferência seja o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cujas condenações na Lava Jato foram anuladas nesta segunda (8). Estes são alguns dos dados obtidos em pesquisa realizada no fim de fevereiro pelo IPEC (Inteligência, Pesquisa e Consultoria), instituto formado por antigos executivos do Ibope. A margem de erro é de dois pontos.
O levantamento mediu a aprovação atual de dez possíveis presidenciáveis em todo o país. Nele, o apresentador de TV Luciano Huck, que nunca concorreu a um cargo eletivo, aparece com maior potencial de voto do que nomes com bagagem política, como a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva (Rede), o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM). Entre os nomes pesquisados, Guilherme Boulos (PSOL) foi o menos citado como opção de voto, com 10%.
Diferentemente de uma pesquisa de intenção de voto, o IPEC não pediu aos entrevistados que escolhessem um candidato de sua preferência, mas sim que respondessem caso a caso se poderiam votar ou não nos possíveis presidenciáveis. Lula foi citado como opção de voto por 50% dos eleitores: 34% disseram que “com certeza votariam” no ex-presidente, caso possa concorrer em 2022, e outros 16% afirmaram que “poderiam votar” nele. Já o percentual de rejeição a Lula, de 44%, é o menor da pesquisa -- quem mais se aproxima deste número é Mandetta, com 45%.
À época da realização da pesquisa, Lula estava inelegível, de acordo com a Lei da Ficha Limpa, por ter sido condenado em segunda instância pela Lava-Jato. Nesta segunda-feira, porém, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin anulou as condenações, o que torna o ex-presidente elegível novamente. Antes disso, Lula já havia apontado Haddad, ex-ministro da Educação e candidato à Presidência na última eleição, como presidenciável novamente em 2022. Haddad tem 27% de potencial de voto, pouco mais da metade do índice dos que admitem votar em Lula. Ciro, que também participou da gestão do ex-presidente, mas tem criticado o petista recentemente, está no mesmo patamar de Haddad, com 25%.
Rejeição em alta
Luciano Huck, citado como opção de voto por 28% dos eleitores, é lembrado especialmente pelos eleitores mais pobres, com renda mensal de até dois salários mínimos, e também entre os mais jovens, grupo no qual 35% admitem a possibilidade de votar no apresentador -- que ainda não decidiu se entrará de vez na política. Desconhecido para apenas 13% dos entrevistados, segundo a pesquisa, Huck enfrenta suas maiores resistências entre homens (64%), entre os que fizeram ensino superior e também naqueles com maiores rendas. Na faixa mais rica, por exemplo, 70% dizem não votar em Huck.
A distribuição da rejeição é similar à encontrada por Doria, rechaçado por quase dois em cada três eleitores dos grupos com maior escolaridade, mais ricos ou do sexo masculino. No caso do governador de São Paulo, contudo, as rejeições altas aparecem justamente nos segmentos em que ele teria, em tese, maior chance de voto de acordo com a pesquisa. No Sudeste, por exemplo, apesar de 17% afirmarem que poderiam votar no tucano, 63% dizem que não votariam de jeito nenhum.
De modo geral, 15% dos eleitores brasileiros admitem optar por Doria na próxima eleição presidencial, enquanto 25% dizem ainda não conhecê-lo “o suficiente para opinar”. Mandetta, que aparece com o mesmo potencial de voto de Doria, é considerado desconhecido por 40% dos eleitores.
Doria, Huck e Bolsonaro estão em patamares semelhantes de rejeição: beiram os 60%, considerando a margem de erro. Nenhum deles, no entanto, lidera o ranking de presidenciável mais rechaçado atualmente. O posto cabe a Marina Silva, que é descartada como opção de voto por 59% dos entrevistados, número que pode chegar a 61% com a margem de erro. Votar em Marina é tido como possibilidade para 21% dos entrevistados.
Preferência evangélica
Segundo a pesquisa, 38% dos eleitores admitem a chance de votar pela reeleição de Bolsonaro. Em relação a Moro, o índice é de 31%. Rompidos em abril de 2020, quando o então ministro da Justiça deixou o governo acusando o presidente de tentar interferir na Polícia Federal, Moro e Bolsonaro têm perfis distintos de apoio, apesar do desempenho semelhante no Sul do país. O ex-juiz da Lava-Jato, que condenou Lula, é lembrado como opção de voto principalmente por eleitores mais ricos e mais escolarizados, onde supera os 36% de preferência. São esses os segmentos, por sinal, que mais rejeitam o petista, num patamar superior a 50%.
Bolsonaro, por sua vez, é o mais lembrado pelos evangélicos: 53% consideram votar no atual presidente. Embora 42% digam não votar no presidente de jeito nenhum, trata-se ainda assim da menor rejeição apresentada pelo segmento.
Com rejeição acima de 60% entre os mais escolarizados, os mais jovens (até 24 anos de idade) e as mulheres, Bolsonaro tem seu pior desempenho entre os nordestinos: 66% dizem não votar “de jeito nenhum” no atual presidente. É nesta região que Lula aparece com mais força, seguido de longe por concorrentes associados ao mesmo campo ideológico. Entre os eleitores do Nordeste, 71% dizem ao menos que poderiam votar em Lula. Com Haddad e Ciro, o número cai para 35% e 34%, respectivamente. Bolsonaro, apesar da alta rejeição, é citado como opção de voto por 31% dos nordestinos.
O IPEC entrevistou presencialmente 2.002 pessoas em 143 municípios, entre os dias 19 e 23 de fevereiro. O nível de confiança apontado pela pesquisa é de 95%.
Não se aplica - J.R.Guzzo, O Estado de S.Paulo
Está escrito na lei brasileira o seguinte: “São crimes de responsabilidade dos ministros do Supremo Tribunal Federal: 1. Alterar por qualquer forma, exceto por recurso, decisão ou voto já proferido em sessão do tribunal”. O que poderia haver de mais claro que isso? A lei, por sinal, foi aprovada em 1950, quando os deputados e seus redatores ainda sabiam escrever em português. Se vale o que está escrito, então, e segundo requer a lógica mais comum, a ministra Cármen Lúcia, que acaba de fazer exatamente o que a lei diz que é crime, deveria estar dando alguma satisfação sobre o que fez; pelo menos isso. Mas aí é que está: ela não precisa fazer absolutamente nada. No Brasil de hoje, que é o Brasil como o STF quer que ele seja, é mais fácil o simpático camelo da Bíblia passar pelo buraco de uma agulha do que a lei valer alguma coisa quando os ministros supremos não querem que valha. A solução universal, então, é dizer: “Nesse caso a lei não se aplica”. Pronto: tudo resolvido e vida que segue, até a próxima.
A lei obviamente não se aplica à ministra, nem a qualquer dos seus dez colegas, nem sobre qualquer decisão que o STF possa tomar – afinal, entre outros portentos, os ministros tocam há mais de um ano um inquérito policial que não têm nenhum direito de tocar, prendem deputados federais, anulam leis aprovadas legitimamente no Congresso Nacional, decretam o que é proibido fazer, decretam o que é obrigatório que se faça. Se fazem tudo isso, por que iriam implicar com Cármen, ainda mais quando ela está fazendo exatamente o que eles querem que seja feito?
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Não existe rigorosamente nada de certo na decisão que a ministra tomou para considerar o juiz Sérgio Moro “suspeito” de agir de maneira parcial na condenação do ex-presidente Lula por corrupção e lavagem de dinheiro – sentença que foi confirmada por outros oito magistrados superiores a ele. Quando julgou a história da suspeição, na abertura do caso em 2018, Cármen disse em seu voto que Moro não era suspeito de nada. Agora, três anos depois e com a condenação de Lula já passada em terceira e última instância, ela dá um voto exatamente ao contrário do primeiro. Não aconteceu nada de novo entre um momento e o outro, a não ser a apresentação de “provas” obtidas através de gravações ilegais – um crime. Tudo o que houve nesse período, segundo diz Cármen, foram “conversas” com o “ministro Gilmar Mendes”.
Cármen não fez apenas um reparo ou ajuste técnico em seu primeiro voto; fez um voto novinho em folha, decidindo simplesmente o oposto do que já tinha decidido. A mudança também não foi feita “por recurso”, como pede a lei; Cármen começou, dias atrás, a espalhar na imprensa que poderia dar um “voto novo”, e assim que o caso foi reaberto para o julgamento final, com um placar de 2 x 2, ela anulou sua própria decisão e deu a vitória a Lula. É verdade que os votos, tanto o que era à brinca como o que foi à vera, não foram dados em sessão plenária do STF, e sim na “Segunda Turma” d qual ela faz parte; mas foi decisão oficial.
Mas e daí, não é mesmo? Nada disso tem a mais vaga importância para o STF. O tribunal vive no seu próprio Brasil, um universo no qual é proibida a entrada de fatos ou pontos de vista diferentes, e onde só vale a vontade pessoal dos ministros. Eles têm a sua própria realidade. O ministro Gilmar, por exemplo, diz que o que desmoraliza a Justiça brasileira não é o Supremo, mas sim a Operação Lava Jato – uma “vergonha mundial”, nas suas palavras.
O STF é isso: a mais bem-sucedida ação da Justiça contra a corrupção, em toda a história, é um erro, o culpado é o juiz e o condenado é um mártir.
JORNALISTA
Brasileiro quer líder que priorize o País e não as eleições
28 de março de 2021 | 14h00
“Só um ano de atraso”, foi uma das frases irônicas que invadiram as redes sociais após o anúncio, na quinta-feira passada, da criação de um comitê para discutir e pôr em prática ações integradas de combate à covid-19 no Brasil. Após reunião com os presidentes da Câmara, do Senado, do Supremo Tribunal Federal (STF), alguns governadores e ministros, o presidente Jair Bolsonaro prometeu um trabalho conjunto e disse acreditar que o melhor caminho para tirar o País da crise é “sem qualquer conflito, sem que haja politização”.
A postura e o discurso do presidente, porém, destoam da forma como o Brasil assistiu à condução da pandemia nos 13 meses anteriores. Em meio a uma crise sanitária sem precedentes e um número cada vez maior de mortos, o período foi marcado por conflitos do presidente – que se opôs a medidas de isolamento e criticou vacinas – com governadores e prefeitos.
Uma consequência desta “pane” federativa pode ser vista num levantamento da Ipsos e do Global Institute for Women’s Leadership publicado neste mês: após um ano conturbado de pandemia, uma parcela majoritária dos entrevistados no Brasil disse querer que seus líderes coloquem os problemas do País como prioridade à frente de suas próprias ambições políticas.
É o que pensa a advogada Valéria Martins, de 35 anos, do Rio de Janeiro, que acompanhou de perto o drama de amigos que perderam familiares para a doença ou que estão desempregados na crise. “Essas brigas políticas só pioram a nossa situação, tanto na questão da saúde, como financeira. Estão pensando nas eleições e não em ajudar o povo”. A mineira Amanda de Paula, que trabalha com administração de empresas, tem o mesmo ponto de vista: “Eu esperava que atitudes tivessem sido tomadas bem antes do caos todo”.
O estudo da Ipsos pediu a mais de 20 mil entrevistados de 28 países que apontassem cinco características prioritárias que esperam de um líder para reverter a crise do coronavírus. Entre os brasileiros, a principal urgência, citada por 42% dos participantes, foi o desejo de que políticos priorizem os interesses do País ao invés de suas próprias carreiras. Esta e outras características como “ser honesto”, “tomar decisões certas na hora certa” e “agir rápido para proteger as pessoas” tiveram, entre os brasileiros, suporte mais alto do que a média dos países pesquisados.
“Essas questões são mais percebidas como mais importantes por aqui”, disse Marcos Calliari, presidente da Ipsos no Brasil. “A capacidade de enfrentar a pandemia e suas desastrosas consequências, em um país que foi particularmente atingido, requer, no olhar da população brasileira, capacidade de entender os problemas da população e protegê-la, comunicar-se bem e pensar no País.”
Apesar de agora abrandar o tom negacionista e falar que o governo nunca se opôs à vacinação, durante meses Bolsonaro duvidou da eficácia das vacinas, chegando a barrar uma decisão do então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, de comprar a Coronavac e chamou o imunizante de “a vacina chinesa de João Doria”. Filiado ao PSDB, o governador de São Paulo é um potencial adversário de Bolsonaro na disputa presidencial do ano que vem. “É normal que haja dissenso em alguns pontos do combate à pandemia como houve com o auxílio emergencial acerca do valor e até do auxílio em si, mas a disputa política não pode se tornar algo nocivo ao País e à população. Foi o que vimos com a vacinação”, disse o advogado Augusto Costa, de 25 anos, morador de Sertãozinho, no interior de São Paulo.
Medidas de isolamento social durante a pandemia também estão entre as principais discordâncias de Bolsonaro com gestores estaduais e municipais. Na semana passada, o presidente chegou a ingressar com uma ação no STF para tentar reverter restrições na Bahia, Rio Grande do Sul e Distrito Federal; o pedido foi negado. Recentemente, governadores e prefeitos de grandes capitais se desentenderam publicamente na adoção de medidas de restrição. Casos como o do prefeito do Rio, Eduardo Paes (DEM), e do governador do Estado, Cláudio Castro (PSC), de Doria e do prefeito paulistano, Bruno Covas (PSDB).
O Supremo assegurou a Estados e municípios a autonomia para tomar medidas contra a propagação da doença, mas não exime a União de realizar ações e de buscar acordos com gestores locais.
“Colocar o País à frente da política é um apelo por responsabilidade coletiva, tomar medidas no tempo certo, sem conflito e sem procrastinação é olhar para as necessidades do povo”, diz o cientista político e escritor Sérgio Abranches. “Hoje vivemos uma ameaça existencial e, em muitos lugares, como o Brasil, governos em completo divórcio com o país, com o povo. Várias lideranças, aqui e em quase todos os países democráticos, já entenderam esse anseio coletivo.”
Para o analista de risco político Creomar de Souza, da consultoria Dharma, a combinação de crises na pandemia – sanitária, política, econômica e social – indica uma tendência de debate político mais focado nas necessidades urgentes do País para o pleito do ano que vem. “As duas grandes tendências de debate são saúde pública e desemprego. O debate eleitoral tende a girar nesses dois temas por causa da pandemia, a dificuldade do governo em atender os doentes e a disponibilização de vacinas.”
O cenário de polarização dialoga com outro dado da pesquisa Ipsos: apenas 4% dos entrevistados brasileiros citaram como prioritária a necessidade de que líderes saibam dialogar e atuar conjuntamente com quem pensa diferente. Nenhum outro país do estudo aparece com uma porcentagem tão baixa neste quesito. “Uma parte do eleitorado brasileiro passou firmemente a acreditar nos últimos anos que dialogar com o diferente é uma corrupção de valores. Isso é ruim para a sociedade”, diz Creomar.
Para Calliari, da Ipsos, o dado indica que a percepção de prioridade deveria desconsiderar as diferenças ideológicas: “Parece haver a percepção de que trabalhar apesar das diferenças políticas não é importante por si só. Há sinais de que a população vê a polarização política, mas importante é trabalhar para atacar o que o País enfrenta, com honestidade, empatia, transparência e competência, independentemente de qual seu espectro ideológico.”
Avanço na mortandade e fracasso na economia
28 de março de 2021 | 03h00
Com pandemia solta e economia emperrada, o Brasil supera 300 mil mortes pela covid-19, acumula recordes de óbitos e encerra março com uma combinação perversa: inflação em alta, desemprego elevado e dezenas de milhões de pessoas à espera de uma nova rodada de auxílio emergencial, suspenso em janeiro. Completado um ano de pandemia, o presidente da República nomeou seu quarto ministro da Saúde e patrocinou a formação de um comitê coordenador de ações contra a covid. Ao atribuir a liderança ao senador Rodrigo Pacheco, presidente do Congresso, Jair Bolsonaro se manteve, cautelosamente, longe dessa função. Pressionado, defendeu a vacinação, mas aproveitou a ocasião para propagandear, mais uma vez, seu famigerado tratamento precoce. Há ociosidade na maior parte da indústria, mas excesso de trabalho em funerárias e cemitérios.
Grandes erros do governo converteram o País em epicentro da pandemia, fator de risco para todo o mundo e ameaça grave aos vizinhos. Mas isso é apenas parte de um balanço raro, se não único, no chamado mundo ocidental. Além de se destacar pelo fracasso federal na crise sanitária, o Brasil saiu do grupo das dez maiores economias. Passou da 9.ª para a 12.ª posição, em 2020, segundo a Austin Rating, ficando abaixo de Canadá, Coreia do Sul e Rússia, elevados aos 9.º, 10.º e 11.º lugares.
Mas a saúde econômica do Brasil é pior que a de muitos países a partir da 13.ª posição – concorrentes com mais investimentos produtivos, maior integração global e melhor educação. Pelo tamanho do produto interno bruto (PIB), Austrália, Espanha e Indonésia ficaram logo abaixo do Brasil, segundo a Austin Rating, e os dois primeiros países poderão ultrapassá-lo em 2021.
Não se trata, no entanto, de enfrentar um concurso internacional, mas de reconhecer e atacar problemas acumulados em muitos anos. O Brasil já andava muito mal quando chegou a pandemia. Em 2019 o PIB cresceu só 1,4%, menos que em 2018, segundo ano de retomada depois da recessão de 2015-2016. No primeiro trimestre de 2020 a produção foi 2,1% menor que nos três meses finais do ano anterior. No ano passado, o recuo de 4,1% resultou também de problemas anteriores à covid-19. O crescimento em 2021, estimado em 3,6% pelo Banco Central, será insuficiente para anular a queda. Realinhar o País ao resto do mundo será ainda mais demorado.
O governo Bolsonaro parece jamais haver percebido a dimensão e as características da crise brasileira, iniciada muito antes do novo coronavírus e já visível no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff. A industrialização, iniciada há cerca de um século e acelerada a partir dos anos 1940, vem sendo revertida. Mas essa desindustrialização é um desmoronamento, em nada comparável com as mudanças observadas no mundo mais avançado, onde ocorre, há anos, a passagem para uma chamada fase pós-industrial.
O governo, segundo alguns analistas, vai mal na economia por ter abandonado sua agenda liberal. Mas nunca existiu essa agenda, e se tivesse existido teria sido uma bobagem. Problemas de competitividade vão muito além de falhas sanáveis com base em cartilhas liberais para jardins de infância.
É bobagem falar sobre o peso da tributação e ignorar a qualidade – e a funcionalidade – dos impostos. Antes de ser pesada, a tributação brasileira é ruim: encarece o investimento produtivo, afeta a competitividade e é tremendamente regressiva, limitando o poder de consumo da maioria. Mudanças, no entanto, envolvem custos. Vamos diminuir os impostos indiretos e aumentar os diretos, atingindo a escala superior de rendimentos, como nos países desenvolvidos? Estão todos de acordo? Mais ou menos?
Outras questões também ultrapassam a cartilha. Como explicar o poder de competição do agronegócio e de algumas indústrias de transformação, exemplificadas pela Embraer? Pessoas andam impressionadas com as maravilhas tecnológicas produzidas por fintechs e aplicadas à atividade rural. São maravilhas, sim, mas, antes da atuação dos jovens produtores de belos equipamentos, a agropecuária brasileira já era uma das mais competitivas, com décadas de modernização e de aumento de produtividade.
Dá para entender essa história sem a contribuição da Embrapa, de outras instituições de pesquisa, de grandes escolas de agronomia e de boas políticas de financiamento e de garantia de preços? E a Embraer – ela saiu do nada, a partir da decisão de um grupo de empresários corajosos e criativos, num ambiente aberto ao livre empreendimento? Não há relação, por exemplo, com o Instituto de Tecnologia de Aeronáutica, ou com o empurrão inicial proporcionado pelo governo, ou com alguma ideia de estratégia nacional e com as condições de financiamento?
Políticas de desenvolvimento podem resultar em protecionismo e em distribuição de favores, como no caso dos “campeões nacionais”. Mas, concebidas e aplicadas com seriedade e inteligência, podem ser fontes de vigor e de progresso econômico e social. Que tal deixar o besteirol de liberalismo versus antiliberalismo e redescobrir a boa discussão sobre desenvolvimento?
JORNALISTA
A perseguição - CARLOS JOSÉ MARQUES
Está em curso por esses dias uma das mais abjetas campanhas de intimidação de opositores ao governo, com requintes arbitrários típicos de episódios pretéritos, da época de um autoritarismo de botinas que deitou raízes no País há mais de meio século e que ninguém esperava ver de volta. A democracia pontifica como pináculo de uma construção coletiva, conquista civilizatória. Não está restrita ao condomínio de partícipes e vassalos lambe-botas da Corte, à patota de privilegiados acomodados desde sempre no avarandado do poder.
Dela participa a sociedade em geral, por opção e direito, e nela projeta-se, como pilar e sustentáculo, fincado em bases sólidas, a liberdade de expressão, essa jamais sujeita a qualquer tipo de intervenção ilegítima, ameaça ou cassação, seja por quem for. A faculdade da livre comunicação é inegociável, não pode ser tolhida por desejo ou incômodo de pretensos soberanos.
Caberia contra ela, quando muito, questionamentos diante de eventuais práticas de calúnia ou difamação, dentro do devido Código Penal. Porém, vergastar tal liberdade, por meio da força, de táticas policialescas e intimidatórias, regidas no bolor da ultrapassada Lei de Segurança Nacional (LSN), é de um desassombro sem tamanho. Algo tenebroso, a ferir de morte os direitos individuais e legítimos. Quando um capitão do mato brasiliense, filhotes radicais e apedeutas bajuladores do mandatário arvoram-se o papel de censores e deliberam pedidos de condução coercitiva daqueles que levantam a voz aos seus desmandos, algo está muito errado. E vem acontecendo. Com uma frequência espantosa, sem precedentes ou propósito. Recentemente, foi o youtuber Felipe Neto intimado a depor na Polícia Civil por suposta injúria passível de condenação na LSN. Tudo errado. No método e na forma. O pedido de intimação havia sido despachado com base em queixa de Carlos Bolsonaro, que fazia uso do aparato estatal para claramente perseguir um desafeto. Carluxo não é ministro da Justiça, nem poderia apelar à LSN. A Polícia Civil não possui legitimidade para agir dessa maneira, arrastando a torto e a direito como se viu. Dentro da obsoleta LSN está previsto inquérito mediante requisição do Ministério Público ou de autoridade militar responsável.
Nada disso existiu. Na avalanche de rasgos cesaristas, dois docentes da Universidade Federal de Pelotas foram forçados a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), proposto pela Controladoria-Geral da União, se comprometendo a não criticar o governo Bolsonaro dentro do ambiente da Instituição. Ambos haviam questionado, durante uma “live”, a conduta federal no combate à pandemia e sofreram a reprimenda, em forma de retaliação e ameaça, demonstrando a debilidade de caráter e pendor despótico do governo. Algo inimaginável e descaradamente ilegal.
O livre exercício de opinar e criticar tem sido posto à prova e vilipendiado em todos os quadrantes onde o Planalto enxerga supostos inimigos. Algo que também o sociólogo Tiago Costa Rodrigues, agora investigado a pedido do ministro da Justiça, sentiu na pele por espalhar outdoors contra o presidente. Assim como a influenciadora Tina Mattos que, após publicações nas redes sociais atacando a “Primeira Família”, passou a ser coagida por falanges de seguidores a mando do “zero três” Eduardo Bolsonaro. Vítimas do aparato de Messias, elas reforçam a impressão de que ocorrências dessa natureza, a refletir os abusos do poder central, não são mais ocasionais, nem isoladas. Resta saber quem irá barrar a escalada totalitária. Quase que diariamente, afrontas à Carta Magna estão sendo chanceladas. E por meio de uma peça legislativa, herdada da ditadura militar, que está, por demais, caduca.
Monstrengo do ordenamento jurídico, a LSN havia sido esquecida desde a redemocratização. Era tida como letra morta, resquício dos porões baseado em penas exageradas e instrumentos cerceadores sem serventia desde estão. Até aqui, a LSN não havia sido abolida por absoluta inércia legislativa – muito embora, tentativas tenham ocorrido. Na delinquente gestão Bolsonarista, ela resgatou fôlego e recuperou um protagonismo sinistro no arcabouço de ferramentas de combate do chefe da Nação. Nada menos que 77 vezes ela foi usada nos últimos dois anos, mais do que o dobro do período imediatamente anterior, compreendido entre 2015 e 2018. Vale dizer nesse contexto: é completamente equivocada a interpretação de que a LSN se presta a tutelar a honra do presidente da República.
Quando muito, legisla sobre ameaças ao Estado e não à figura do mandatário. No entender dos magistrados do Supremo Tribunal, trata-se de um fóssil normativo, que infringe garantias fundamentais e está em desalinho com a letra constitucional, ferindo o próprio espírito da Carta. A bem da verdade, a LSN virou, há muito tempo, um corpo estranho no aparato legal, um espectro vagando no mundo jurídico, que precisa ser exorcizado ou enquadrado na devida dimensão. No conjunto de preceitos mostra-se incompatível com a ordem democrática e deverá ser banida ou ter trechos retirados, como almeja o STF. Mesmo assim, o capitão do Planalto anima-se em usá-la e sai a trombetear absurdos normativos como o do Estado de Sítio.
Fez isso, novamente, na semana passada, deixando um País inteiro sobressaltado. O titular da Suprema Corte, Luiz Fux, teve de cobrar explicações do autor da bravata -prontamente negada, embora as declarações nesse sentido ficassem à prova para demonstrar o contrário. De que argamassa é feita a sandice presidencial? Implacavelmente ele lança infâmias aos gritos, como a de desafiar ordens dos magistrados, bradando um “acabou porra”, e não é advertido. Sente-se à vontade para extrapolar limites, indo contra instituições, em um desvario capaz de incitar a balbúrdia da militância miliciana, simpática a sua causa, que acaba por pedir o fechamento do Congresso e a prisão de ministros do Supremo, sem resistência à altura.
É nesse sobranceiro atrevimento que ocorre o avanço dos sinais de arbitrariedade. Inútil a espera por moderação da parte do chefe do Executivo. Aguardar pacientemente uma mudança de postura equivale à conivência com os malfeitos. As diretrizes do golpismo almejado pelo caudilho estão traçadas, urdidas nos gabinetes de fiéis seguidores. Intoleráveis, repugnantes, movimentações nesse sentido crescem gradativamente. O ministro da Justiça bolsonarista, André Mendonça, por exemplo, parece usar a Polícia Federal como instrumento persecutório, aplicando sem pestanejar a agenda de viés autoritário do capitão. Onde vai acabar tanta prepotência? É passível de aceitação geral o clima de revanchismo? A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), finalmente, começou a reagir e mobilizou-se, por meio de parecer, para questionar o risco do Estado de Defesa ou de Sítio, colocado em cena pelo “mito”. Há quem julgue como “ato de desespero” as manobras. O presidenciável Ciro Gomes, que também está sendo alvo de inquérito pela Polícia Federal por suposto desacato à honra de Jair Bolsonaro, alerta como perigosas as libertinagens federais. Não há dúvidas sobre a urgência de uma resposta eficaz.
A mais coerente delas seria a do impedimento do mandatário, declarando-o incapaz. Sentimento nas mentes e corações de muitos, ele brotou e ganha corpo diante da constatação de que é inaceitável o perigo à democracia decorrente da onda de tantos brasileiros seguirem anestesiados e chocados pela contínua violência aos seus direitos por parte de um capitão. Alguém precisa fazer alguma coisa! ISTOÉ