Centro não é o ponto entre dois extremos - Míriam Leitão
O PT jogou o jogo democrático, Bolsonaro faz a apologia da ditadura. A frase que abre esse parágrafo eu disse em 2018, em comentários e colunas, no segundo turno das últimas eleições. Era a conclusão da análise dos fatos e das palavras dos grupos políticos que disputavam a eleição. Fui hostilizada por dirigentes petistas do Rio dentro de um avião, processei por difamação um servidor do Planalto no governo Dilma. Sou vítima de constantes fake news e agressões do gabinete do ódio do governo Bolsonaro. Já fui criticada em público pelo ex-presidente Lula mais de uma vez e fui vítima de mentiras sórdidas ditas pelo presidente Jair Bolsonaro. Poderia com base nisso afirmar que os dois são iguais? Objetivamente, não. Seria falso. Posso concluir que ambos não gostam de mim, mas isso é o de menos. Não é uma questão pessoal.
Em dois anos e quatro meses, Bolsonaro superou as piores expectativas. Na pandemia, ele mostrou seu lado mais perverso. A lista é longa. Deboche diante do sofrimento alheio, disseminação do vírus, criação de conflitos, autoritarismo. O país chegou ao número inaceitável de 400 mil mortos com um presidente negacionista ameaçando usar as Forças Armadas contra a democracia. Em Manaus, no último fim de semana, ele repetiu que poderia lançar os militares contra as ordens dos governadores. “Se eu decretar, eles vão cumprir”. Esse clima de beligerante intimidação prova, diz um general, uma “necessidade doentia de demonstrar ter poder”. Segundo essa fonte, “cada vez que se declara detentor dessa suposta força, demonstra na verdade não tê-la”. Seja qual for a análise da mente distorcida do presidente, o fato é que ele ameaça o país com a ruptura institucional no meio de um doloroso sofrimento coletivo.
O ex-presidente Lula teve uma política ambiental de excelentes resultados na gestão da ministra Marina Silva e do ministro Carlos Minc. O país viu avanços na inclusão de pobres e negros. Na economia, houve erros e acertos. No campo institucional, escolheu ministros do Supremo qualificados e nomeou procuradores-gerais da lista tríplice. Bolsonaro quer devastar a floresta, capturar as instituições e seu governo exibe preconceito como se fosse natural.
Bolsonaro faz ataques sistemáticos aos veículos de imprensa e aos jornalistas. Lula ameaçou impor o que ele chamou de “regulação da mídia”, mas recuou diante da resistência dos órgãos de comunicação. Ameaças nunca devem ser subestimadas, mas as instituições sabem lidar com um governante que tenha um mau projeto. Mais difícil é se defender de um inimigo da democracia como Bolsonaro.
As decisões recentes do Supremo Tribunal Federal tiraram as penas que recaíram sobre Lula e ele tem dito que foi inocentado. Tecnicamente sim, porque não é mais um condenado pela Justiça. O PT defende a tese de que foi tudo uma conspiração contra o partido. Falta explicar muita coisa, mas principalmente a materialidade do dinheiro que foi devolvido por corruptos e corruptores ao poder público.
Bolsonaro usou o sentimento anticorrupção sem o menor mérito, como se vê na sucessão de rachadinhas, funcionários fantasmas, pagamentos em dinheiro vivo e transações imobiliárias que rondam a família. Isso sem falar nas relações estreitas com personagens obscuros, como o miliciano Adriano da Nóbrega.
Partidos de outras tendências políticas devem trabalhar para oferecer alternativas ao eleitor brasileiro, porque a democracia é feita da diversidade de ideias e de propostas. O erro que não se pode cometer é dizer que essa é a forma de fugir de dois extremos. Isso fere os fatos. Não existe uma extrema-esquerda no país, mas existe Bolsonaro, que é de extrema-direita. No governo, ele multiplicou as mortes da pandemia e sempre deixa claro que se puder cancela a democracia.
Com Alvaro Gribel (de São Paulo)
Outra manobra com a Lava Jato - O Estado de S.Paulo
A recente decisão do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4) revogando a prisão preventiva de Eduardo Cunha em processo oriundo da 13.ª Vara Federal de Curitiba fez lembrar que a Lava Jato está longe de ser mera atividade persecutória contra Luiz Inácio Lula da Silva, como às vezes o ex-presidente petista tenta fazer crer. A Operação revelou importantes esquemas de corrupção, que não podem ser apagados.
Como ocorre num Estado Democrático de Direito, os atos judiciais estão sujeitos ao controle de instância superior. No entanto, a necessária revisão de eventuais excessos e equívocos cometidos ao longo do processo não é capaz de atribuir uma aura de pureza aos réus.
“O TRF-4 finalmente fez justiça ao ex-presidente Eduardo Cunha: ele já tinha o direito de estar em liberdade, inclusive com prazo para progressão de regime”, disse a defesa do ex-presidente da Câmara, após a revogação da prisão preventiva. É evidente para todos, no entanto, que a decisão do tribunal de Porto Alegre não declara a inocência do réu.
Eduardo Cunha continua condenado em segunda instância pelos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e evasão fraudulenta de divisas envolvendo a compra de um campo de petróleo na África. Em novembro de 2017, em sede de apelação, o TRF-4 fixou pena de 14 anos e 6 meses de reclusão por esses crimes. Além disso, Eduardo Cunha tem contra si uma segunda ordem de recolhimento em outro processo.
Ou seja, o reconhecimento pelo TRF-4 do prazo excessivo da prisão preventiva de Eduardo Cunha não representa nenhuma mudança de juízo sobre sua conduta. O mesmo pode – e deve – ser dito em relação a Luiz Inácio Lula da Silva. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a incompetência da 13.ª Vara Federal de Curitiba para julgar os processos da Lava Jato contra o ex-presidente Lula não declarou que ele não cometeu os crimes pelos quais foi denunciado. Simplesmente foi dito qual era o juízo competente para conduzir os processos.
Lembrar o conteúdo da decisão judicial – Luiz Inácio Lula da Silva não foi declarado inocente das acusações que pesam contra ele, tampouco apresentou alguma prova para refutar as acusações – não significa promover uma perseguição contra o ex-presidente petista. É apenas dar-lhe o mesmo tratamento que outros réus da Lava Jato – por exemplo, Eduardo Cunha e Sérgio Cabral – receberam.
Ao longo dos trabalhos da Lava Jato houve a tentativa, por parte de alguns procuradores, de transformar os resultados investigativos da Operação numa espécie de condenação generalizada e irrestrita da atividade política. Em vez de investigar crimes, parecia que a missão da Lava Jato era sanear a política nacional, numa espécie de revolução moral e cívica levada a cabo pelo Ministério Público.
Obviamente, essa expansão de objetivos da Lava Jato era indevida e despropositada. Uma operação criminal deve apurar crimes, e não levar adiante um movimento político.
Agora, observa-se a tentativa, por parte do ex-presidente Lula e de seus seguidores, de realizar outra extrapolação dos efeitos jurídicos da Lava Jato, em sentido inverso. Pretende-se que decisões processuais sobre o juízo da 13.ª Vara Federal de Curitiba realizem uma reabilitação política de Luiz Inácio Lula da Silva.
Trata-se de uma manobra indecente, que faz troça com a memória da população. Todos os elementos descobertos pela Lava Jato em relação ao ex-presidente Lula continuam presentes. Nem sequer houve a tentativa de mostrar que o farto conjunto de provas apuradas contra ele está equivocado. Por isso, não faz sentido que uma decisão meramente processual (sem nenhuma afirmação sobre o mérito dos casos) tenha o condão de reabilitá-lo politicamente.
Sejam quais forem os efeitos jurídicos que a Justiça vai dar às descobertas da Lava Jato, uma coisa a população já sabe. A conduta de Luiz Inácio Lula da Silva não diverge muito daquela que se viu em Eduardo Cunha, Sérgio Cabral ou mesmo Paulo Maluf, expert em alegar lisura moral com base em questões processuais.
De Witzel a Renan - J. R. Guzzo, O Estado de S.Paulo
Imagine, durante dois minutos, o que estaria acontecendo se aparecesse no noticiário político a seguinte informação: “Wilson Witzel assume as funções de relator na CPI da Covid”. A reação, para 95% das pessoas que acompanham esse tipo de coisa, seria a mesma: “Não é possível; tem de ter algum engano nisso aí”. Quem não se lembra dele? O cidadão, em agosto do ano passado, foi o autor de um prodígio: conseguiu ser posto para fora do governo do Rio de Janeiro, acusado de roubar recursos destinados a combater a epidemia. Isso mesmo, do Rio de Janeiro – que já teve no seu comando um gigante inigualável na história da corrupção mundial, Sérgio Cabral (o homem tem mais de 200 anos de prisão no lombo, condenado por ladroagem em primeiro grau), e cuja Assembleia Legislativa deu diploma a cinco deputados que estavam na cadeia no momento da posse. Quer dizer: ser deposto do cargo de governador do Rio não é para qualquer um. Não pode ser normal, assim, que a turma aprovada pelo Senado para dirigir a sua CPI seja essa que está aí: não tem Witzel como relator, mas tem Renan Calheiros.
É possível demonstrar alguma diferença de verdade entre os dois? Não, não é.
Pode uma coisa dessas? Não só pode, neste Brasil de hoje, como está sendo considerada um momento de notável importância na história nacional. Renan, um dos senadores que têm mais encrenca que qualquer outro político brasileiro com o Código Penal, responde a um caminhão de processos na Justiça e há 30 anos vem se utilizando das “imunidades parlamentares” como principal recurso para manter-se fora da cadeia. Pois então: com tudo isso nas costas, ele passou agora a ser julgador. Witzel, ou Maluf, ou Geddel Vieira Lima – aquele que tinha R$ 50 milhões em dinheiro vivo num apartamento da Bahia – ou qualquer outro colosso nessa área, seriam tidos como uma piada se fossem encarregados de investigar alguma coisa. Mas Renan é levado mais a sério, no papel de magistrado, que o próprio Rei Salomão. É assim que ficou o Brasil.
Renan saiu da sua vida habitual, e se tornou um dos heróis da luta pela moralidade pública neste País, por um motivo mais decisivo que qualquer outro: “reinventou” a si próprio, como se diz nos manuais de autoajuda, e assumiu a “persona” de um marechal de campo da esquerda brasileira. Mais: convenceu todo o ecossistema político do Brasil de que é, hoje, o cabeça de chave nas lutas populares da “resistência” contra o presidente Jair Bolsonaro. Por conta disso, e automaticamente, passou a ser tratado como um estadista de primeira classe – um Churchill de Alagoas, que está arriscando a própria vida para salvar o País da direita, do “negacionismo” e do genocídio.
É este, claramente, o elixir universal da política brasileira de hoje: fique contra Bolsonaro e, cinco minutos depois, você paga todos os seus pecados, anula qualquer vício de sua vida anterior e ainda ganha uma indulgência plenária, daquelas que a Igreja dava antigamente e colocavam o cidadão direto no Céu, sem escalas. O próprio Witzel, aliás, está tentando ir um pouco por aí; também descobriu que falar mal do presidente da República dá lucro na hora. Já começa a ser chamado de “ex-governador do Rio de Janeiro” – só isso, “ex-governador”, sem maiores detalhes. Daqui a pouco pode estar nas mesas-redondas do horário nobre da televisão, ao lado dos cientistas políticos, etc. etc. discursando sobre como consertar o Brasil. Com sorte, e se não perder o foco em Bolsonaro, ainda pode virar um novo Renan.
As pessoas pararam de prestar atenção no que dizem, ou no que pensam. Na verdade, pararam de pensar. É o ambiente ideal para os Renans.
*JORNALISTA
Covid-19: Brasil tem 406,4 mil mortes e 14,7 milhões de casos
O número de mortes por covid-19 chegou a 406.437 no Brasil. Nas últimas 24 horas, foram perdidas mais 2.656 vidas para a doença, de acordo com o boletim de hoje (1º) do Ministério da Saúde. Ontem (30), o balanço diário marcava 403.781 óbitos. Há ainda 3.629 mortes em investigação pelas equipes de saúde.
O total de pessoas infectadas desde o início da pandemia totalizou 14.725.975. Entre ontem e hoje, foram registrados 66.964 novos diagnósticos positivos de covid-19.
O número de pessoas recuperadas totalizou 13.242.665. Já a quantidade de pacientes com casos ativos, em acompanhamento por equipes de saúde, ficou em 1.076.873.
Os dados, em geral, são menores aos domingos e segundas-feiras pela menor quantidade de trabalhadores para fazer os novos registros de casos e mortes. Já às terças-feiras eles tendem a ser maiores já que neste dia o balanço recebe o acúmulo das informações não processadas no fim-de-semana.
O ranking de estados com mais mortes pela covid-19 é liderado por São Paulo (96.941), Rio de Janeiro (44.619), Minas Gerais (34.036), Rio Grande do Sul (25.086) e Paraná (22.557). Já as unidades da Federação com menos óbitos são Roraima (1.513), Acre (1.534), Amapá (1.549), Tocantins (2.559) e Alagoas (4.240).
Vacinação
Até a tarde deste sábado, já foram distribuídas 64,3 milhões de doses de vacinas para todos os estados. Deste total, foram aplicadas 42,9 milhões de doses, sendo 29,2 milhões da primeira dose e 13,6 milhões da segunda dose.
Hoje, o Ministério da Saúde começou a distribuir 6,9 milhões de doses que foram entregues ontem pelos laboratórios. São 6,5 milhões de doses da vacina Oxford/AstraZeneca, produzida no Brasil pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), além de 420 mil da CoronaVac, parceria entre o Instituto Butantan e a farmacêutica chinesa Sinovac.
No total, neste fim de semana estão sendo disponibilizadas 10,9 milhões de doses de imunizantes contra a covid-19, incluindo as 4 milhões importadas por intermédio do consórcio Covax Facility, coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Edição: Claudia Felczak / AGÊNCIA BRASIL
Uso de mensagens obtidas por hackers divide STF e abala Lava Jato
01 de maio de 2021 | 13h55
BRASÍLIA - A validade das mensagens obtidas por hackers que entraram na mira da Operação Spoofing divide ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). O plenário da Corte ainda não decidiu sobre a licitude dessas conversas, obtidas por um grupo criminoso que invadiu celulares de autoridades e revelou mensagens atribuídas ao ex-juiz Sérgio Moro e a ex-integrantes da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba. Mesmo sem uma definição sobre a controvérsia, seis ministros do STF já se manifestaram sobre o assunto em julgamentos, decisões e entrevistas concedidas recentemente. A definição sobre a validade dos diálogos como prova ou não é crucial para o legado e desdobramentos da Lava Jato.
As mensagens apreendidas na Spoofing abalaram os processos decorrentes do trabalho da força-tarefa e colocaram em xeque a atuação de Moro e de procuradores de Curitiba. O conteúdo – de origem criminosa, e, portanto, ilícita – tem sido usado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para reforçar a narrativa de que o ex-juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba agiu em conluio com procuradores e foi parcial nas investigações. Outros réus da Lava Jato também buscam se beneficiar, na esteira do petista, como o senador Renan Calheiros (MDB-AL) e o ex-governador do Rio Sérgio Cabral.
O assunto voltou à tona, em 22 de abril, no julgamento do STF em que a maioria dos ministros confirmou a decisão da Segunda Turma que havia declarado a suspeição de Moro no processo do triplex do Guarujá – Lula foi condenado nesta ação. O resultado marcou uma das maiores derrotas da Lava Jato no STF. Na sessão, o ministro Luís Roberto Barroso defendeu a operação. “Prova ilícita, produto de crime, é prova ilícita e sua utilização, sobretudo para sanção de quem quer seja, é expressamente vedada pela Constituição. Trata-se de material sem autenticidade comprovada. A partir da invasão criminosa de privacidade passou-se a vazar a conta-gotas cada fragmento do produto do crime do hackeamento, para que os corruptos se apresentassem como vítimas”, disse Barroso. A Constituição prevê que “são inadmissíveis, no processo, provas obtidas por meios ilícitos”.
“Nas conversas privadas, ilicitamente divulgadas, encontraram pecadilhos, fragilidades humanas e, num show de hipocrisia, muitos se mostraram horrorizados, gente cuja reputação não resistiria a meia hora de vazamento de suas conversas privada”, afirmou Barroso.
O tom incisivo do ministro irritou Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes – expoentes da ala crítica aos métodos da Lava Jato –, que bateram boca com o colega na sessão. Em março, com os votos de Lewandowski e Gilmar, a Segunda Turma do STF declarou Moro parcial.
Naquele julgamento, Gilmar e Lewandowski listaram sete episódios para demonstrar que Moro foi parcial na ação do triplex, como a condução coercitiva de Lula, a quebra de sigilo telefônico de advogados do ex-presidente e o levantamento do sigilo da delação do ex-ministro Antonio Palocci na véspera do primeiro turno das eleições de 2018. As mensagens hackeadas foram usadas como “reforço argumentativo”.
“A utilização das referidas mensagens, como reforço argumentativo à corroboração das teses já contidas (de suspeição de Moro), revela-se, insisto, não apenas legítima, mas de indiscutível utilidade para evidenciar ainda mais aquilo que já se mostrava óbvio, isto é, que o paciente (Lula) foi submetido não a um julgamento justo, segundo os cânones do devido processo legal, mas a um verdadeiro simulacro de ação penal, cuja nulidade salta aos olhos, sem a necessidade de maiores elucubrações jurídicas”, disse Lewandowski.
Gilmar destacou que o Supremo entende que o interesse de proteção às liberdades do réu “pode justificar a relativização à ilicitude da prova”: “Na doutrina brasileira, sustenta-se a possibilidade de utilização de prova ilícita pró-réu, a partir do princípio da proporcionalidade, considerando o direito de defesa”. O terceiro voto pela suspeição de Moro veio da ministra Cármen Lúcia, que não se manifestou sobre a validade das mensagens dos hackers.
Antes de Barroso expor no plenário seu entendimento sobre a polêmica, o uso dos diálogos obtidos pelos hackers já havia sido contestado pelos ministros Kassio Nunes Marques, Edson Fachin e Rosa Weber. No julgamento da Segunda Turma sobre Moro, Nunes Marques rechaçou as mensagens, sob o argumento de que validá-las seria uma forma de “legalizar a atividade hacker” no País. “Se hackeamento fosse tolerável para meio de obtenção de provas, ninguém mais estaria seguro de sua intimidade, tudo seria permitido. São absolutamente inaceitáveis tais provas, por serem obtidas diretamente de crimes”, disse. “Essa prática abjeta de espionar, bisbilhotar a vida das pessoas, estaria legalizada e a sociedade viveria um processo de desassossego semelhante às piores ditaduras. Não é isso que deve prevalecer em sociedades democráticas.”
Fachin considerou “inconcebível” a utilização do material “sem que as dúvidas sobre sua legalidade sejam completamente espancadas”. Em entrevista ao Estadão, o relator da Lava Jato disse que não acha que prova ilícita “pode ser varrida para debaixo do tapete, agora é preciso saber o que fazer com ela”.
Inquérito no STJ
Não foi só a defesa de Lula que buscou garantir acesso aos diálogos hackeados. O material também serviu para o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Humberto Martins, determinar, por conta própria, a abertura de inquérito sigiloso para apurar suposta tentativa de investigação ilegal de ministros da Corte por parte de procuradores da extinta força-tarefa da Lava Jato em Curitiba. Um dos diálogos mostrou a intenção de procuradores de investigar, sem autorização, a movimentação patrimonial de ministros. O inquérito, no entanto, acabou suspenso por Rosa Weber, o que acirrou os ânimos entre STF e STJ. Para Rosa, não é possível usar prova ilícita para condenar alguém. “Não há margem no texto constitucional que admita interpretação voltada a legitimar seu uso (das mensagens obtidas por hackers) em processo voltado à responsabilização criminal de alguém, por mais graves que sejam os fatos imputados.”
O uso das mensagens hackeadas também esbarra em relatório da Polícia Federal, que já concluiu que não é possível confirmar a autenticidade dos diálogos. No documento, a PF afirma que “a autenticidade e a integridade de itens digitais obtidos por invasão de dispositivos alheios não se presumem, notadamente quando se reúnem indícios de que o invasor agiu com dolo específico não apenas de obter como também de adulterar os dados”. O documento reforça a posição da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o inquérito do presidente do STJ, Humberto Martins.
“A regra que veda a utilização da prova ilícita em desfavor do acusado é vista como absoluta, já que não admite qualquer exceção nem mesmo em casos de crimes graves não só no Brasil, como na maior parte dos países de tradição democrática. Por outro lado, é também largamente aceita no mundo a noção de que provas ilícitas podem ser utilizadas em benefício do réu”, disse o advogado Ademar Borges, professor de direito constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
Na avaliação do advogado Marcelo Knopfelmacher, defensor dos procuradores da Lava Jato, o conteúdo obtido pelos hackers, “além de ilícito, é imprestável”. “Em duas oportunidades a Polícia Federal fez constar, em laudos distintos, que o material apreendido com os hackers não pode ter sua autenticidade aferida”, ressaltou. Moro não se manifestou. O STJ, por sua vez, alegou que o inquérito aberto por Martins está em sigilo, suspenso por decisão do STF, e “não há mais nada a informar”. / COLABOROU PAULO ROBERTO NETTO
O Poder Judiciário passando a boiada
O processo judicial eletrônico iniciou a reforma mais expressiva no sistema de Justiça nacional neste século. Práticas obsoletas, morosidade, falta de transparência e gargalos de acesso à Justiça são problemas que a tecnologia prometia enfrentar.
A distribuição dos serviços judiciários ao cidadão depende de usuários profissionais, entre os quais, a advocacia. É a única profissão que atua em todos os pontos do sistema de Justiça e tem contato direto com os cidadãos que demandam por aqueles serviços. Portanto, pode contribuir de maneira decisiva para aprimorar a Justiça. Porém, raramente as opiniões da advocacia são consideradas, quando não tratadas como obstáculo.
Por exemplo, a gravação de audiências sempre foi reivindicação da advocacia. Os juízes resistiam com firmeza à medida, mesmo depois de prevista no artigo 367 do Código de Processo Civil. Na diretoria da Aasp (Associação dos Advogados de São Paulo), representamos contra juíza que expediu mandado de busca contra um advogado, para apreender o gravador em que ele havia registrado sua audiência.
Com a pandemia, as audiências por videoconferência tornaram a gravação habitual, defendida pelos juízes e regulamentada com rapidez em provimentos de tribunais e do Conselho Nacional de Justiça que tratam da "Justiça digital". Formulado ao arrepio do debate público e valendo-se da situação emergencial, há um arsenal de normas de gabinete estreitando a participação cidadã na administração da justiça.
As regras de audiência online estão sendo definidas conforme interesses exclusivos da burocracia judiciária e, na prática, servem para realizar desejo antigo de parcela expressiva dessa burocracia: distanciar-se dos advogados e, por consequências, da população.
A Justiça digital que nasce da pandemia transferiu ônus processuais e econômicos excessivos e desiguais para a advocacia, também por omissão da OAB. Partes e testemunhas sem meios técnicos ou ambiente adequado para participar de atos judiciais dependem dos escritórios de advocacia, que se tornaram extensão dos fóruns e, assim, têm garantido a continuidade da prestação jurisdicional.
O ingresso livre nos fóruns e tribunais foi substituído por horas em "salas de espera" virtuais, o botão de mudo usado para cassar a palavra de advogados. Há notícias recorrentes de juízes que não atendem a advogados pelos meios eletrônicos ou inviabilizam esse imprescindível contato com regras criativas (envio de sustentação oral gravada, despacho por e-mail etc.).
A tecnologia sempre será muito útil no campo jurídico. Porém, há de se observar a necessidade de preservação do espaço público e presencial para realização de alguns atos judiciais: audiências de custódia, de instrução, depoimentos sensíveis, acareações etc. Há formalidades que reforçam a seriedade do ato e comunicam às pessoas com a solenidade devida que ali está se produzindo justiça, o que não acontece quando tudo ocorre por vídeo, com perda das percepções pessoais, da comunicação não verbal e da mediação direta entre profissionais do direito e jurisdicionados.
O modelo de Justiça digital que está sendo implementado é excludente, disfuncional e formatado apenas sob a ótica da burocracia judiciária. No final dos anos 1990 desenvolveu-se o conceito de "Justiça de proximidade". Desde 2020, provimentos estão substituindo-o pela "Justiça de distanciamento".
Para reverter esse processo e não desperdiçar mais uma oportunidade de usar bem a tecnologia, é essencial que a Justiça digital seja tratada em lei. O Parlamento é a arena pública adequada ao debate republicano. E, isso acontecendo, é preciso que a OAB saia da letargia, pense mais nos problemas da justiça e menos em política eleitoral.
O debate legislativo deve pautar-se por definições que não constam das centenas de provimentos de tribunais e do CNJ, em especial: quais casos e atos judiciais serão realizados apenas por meio digital; quais aqueles que não poderão ser realizados por meio digital e quais os que poderão ser online diante de concordância das partes, não dos juízes. Esta última categoria empodera o cidadão e democratiza a administração da Justiça, além de se alinhar com o princípio de cooperação adotado por nossa legislação em 2015. Sem que essas definições sejam claras e fruto de um processo que passa pela participação e deliberação de todos, a Justiça digital, anunciada como panaceia, não será nada além da repetição online de antigos problemas de uma Justiça que segue sobrecarregada, arbitrária e errática.
Leonardo Sica é advogado formado pela Faculdade de Direito da USP, doutor e mestre em Direito Penal pela USP, ex-presidente da Aasp (Associação dos Advogados de São Paulo) e pré-candidato à presidência da OAB-SP.
Revista Consultor Jurídico, 30 de abril de 2021, 17h05