Após Lava-Jato, decisões da Justiça permitem que candidatos que foram condenados e até presos possam voltar às urnas
Gustavo Schmitt / O GLOBO
SÃO PAULO - Três anos após eleitores varrerem figuras tradicionais da política brasileira, sob influência do discurso de combate à corrupção e o auge da Operação Lava-Jato, o país assiste, agora, à reabilitação de parte de políticos investigados. Decisões judiciais recentes permitem que candidatos que foram condenados e até presos possam voltar às urnas.
As vitórias no Judiciário do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que chegou a passar 580 dias preso, foram as que provocaram o maior impacto eleitoral. O Supremo Tribunal Federal (STF) anulou, em março, duas sentenças por corrupção e lavagem de dinheiro contra o petista. Para analistas, embora tenha recuperado o direito de se candidatar, Lula ainda terá que se explicar ao eleitor sobre as investigações. Logo após a decisão, 57% dos entrevistados pelo Datafolha ainda consideravam o ex-presidente culpado das acusações feitas pela Lava-Jato.
O ex-presidente Michel Temer (MDB), que chegou a ter o carro interceptado pela Polícia Federal no meio da rua em 2019, já foi absolvido em cinco processos. Embora tenha dito que não tem a pretensão de se candidatar, Temer está participando ativamente das costuras do seu partido, inclusive na busca por um candidato de centro.
O processo de reabilitação de políticos também deve ter impacto nas eleições estaduais. No PSDB, o ex-governador Geraldo Alckmin já ganhou sete de 11 ações na Justiça, de acusações de improbidade, na esfera civil, até caixa dois na Justiça Eleitoral. Ele ainda se divide entre disputar prévias com o atual vice-governador Rodrigo Garcia ou trocar de partido para concorrer ao governo de São Paulo.
Segundo seus advogados, Alckmin ainda é réu em uma ação na Justiça eleitoral por caixa dois envolvendo suposto pagamento da Odebrecht em 2014.
— Não há provas, apenas palavra de delator — afirma Fábio Machado, advogado do ex-governador.
Um dos seus possíveis adversários, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT) foi absolvido em pelo menos três ações por improbidade administrativa nos últimos meses. Haddad ainda tem uma condenação na Justiça eleitoral por caixa dois, mas a Procuradoria pediu a absolvição.
No Paraná, vitórias nos tribunais levaram o ex-governador Beto Richa (PSDB) a avaliar a possibilidade de concorrer ao governo do estado ou à Câmara dos Deputados, segundo seus aliados. O tucano foi preso pelo menos três vezes desde 2018, quando renunciou à candidatura ao Senado. Em fevereiro, ele foi absolvido por falta de provas de uma acusação de aplicação irregular de R$100 mil para reforma de três unidades de saúde em 2008. Pelo menos quatro processos que apuram desvios na educação foram suspensos.
Entidades que atuam contra a impunidade veem um ambiente de enfraquecimento do combate à corrupção.
— A volta desses candidatos decorre de um sistema jurisdicional frouxo. Dica uma sensação amarga quando as penas não são eficazes — afirma o procurador de Justiça de São Paulo Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção.
Por outro lado, há quem acredite que a revisão de eventuais abusos da Lava-Jato e de outras operações não significa que todas as investigações tinham erros.
— Trata-se de dar um recado de que o combate à corrupção tem que ser dentro da lei — diz o professor de Direito da USP, Gustavo Badaró.
Ato com Bolsonaro reúne 12 mil motos em SP em meio a novo avanço da pandemia
Um ato político com presidente Jair Bolsonaro (sem partido) reuniu milhares de motociclistas em São Paulo neste sábado (12). A motociata durou cerca de quatro horas, reuniu cerca de 12 mil motos, segundo o governo paulista, travou o trânsito em diferentes pontos da capital e levou ao fechamento completo dos dois sentidos da rodovia dos Bandeirantes até região de Jundiaí.
Com o presidente à frente, sem máscara, a manifestação intitulada “Acelera para Cristo” começou às 10h, na região de Santana, zona norte da capital, e terminou no obelisco do Ibirapuera, às 13h30. O percurso, que incluiu um bate-volta a Jundiaí, foi de cerca de 130 km.
Ao longo do trajeto, gritos de “aqui é Bolsonaro”, “viva, Bolsonaro” e “isso está gigante” se misturaram com barulho de buzinas e ronco dos motores das motocicletas. Houve também gritos contra a imprensa e o governador João Doria (PSDB), adversário político do presidente.
Bolsonaro chegou de carro poucos minutos antes, cumprimentou apoiadores e causou aglomeração. Foi levantado e cumprimentou manifestantes do alto. Eram tantas motos que as últimas delas só conseguiram deixar a concentração quase uma hora após o início da motociata.
Na concentração e na dispersão houve aglomeração de apoiadores. A maioria dos motociclistas não usava máscara de proteção contra a Covid e tinha bandeiras do Brasil amarradas no corpo. O presidente foi saudado por apoiadores em diferentes pontos do trajeto.
Antes do evento, um “pedágio solidário” foi montado para receber doações de alimentos que serão distribuídos em comunidades carentes. Duas fileiras com voluntários, em sua maioria de máscara, recepcionavam os motociclistas e distribuíam bandeiras do Brasil e adesivos.
A motociata com Bolsonaro ocorreu num momento de novo avanço da pandemia. Nesta sexta-feira (11), o Brasil registrou 2.215 novas mortes por Covid-19 e 86.061 novos casos da doença. Com isso, o total de mortes no país chegou a 484.350 e o de casos a 17.301.220 desde o início da pandemia.
A média móvel de mortes ficou em 1.912 óbitos por dia, marca mais alta em 20 dias —o número está há 140 dias acima de mil mortes diárias, considerado um patamar bastante alto.
O governo João Doria, adversário político de Bolsonaro, autou o presidente por não usar máscara de proteção facial contra a Covid na manifestação. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, e o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, também foram autuados.
O governo afirmou que equipes da Saúde e Segurança Pública flagraram os três sem máscara. O valor da autuação é de R$ 552,71.
“O documento endereçado às três autoridades pontua a necessidade da manutenção das medidas preventivas já conhecidas e preconizadas pelas autoridades sanitárias internacionais, como uso de máscara e distanciamento”, diz a nota.
Mais tarde, também o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles foi autuado por não ter utilizado máscara. No documento, consta que “a infração foi constatada em carro de som em frente ao Monumento às Bandeiras”.
O presidente já havia sido autuado pelo governo Flávio Dino (PC do B), do Maranhão, por causar aglomeração e não usar máscara de proteção facial em evento em Açailândia, em maio.
Em reunião dos organizadores com a PM, foram estabelecidas algumas regras: as motos deveriam estar todas emplacadas e não poderiam trafegar a mais de 40 km/h. Está proibido empinar o veículo, e todos devem usar capacete e máscaras —nem todos seguiram esse último item do acordo.
Neste sábado, o reforço no policiamento em razão da motociata custou R$ 1,2 milhão aos cofres públicos, segundo o governo paulista.
A ação teve a participação de 1.433 policiais, com a atuação de batalhões territoriais e especializados, como Baep, Choque e Canil, além de equipes do Corpo de Bombeiros e do Resgate.
O evento também contou com o apoio de cinco aeronaves, dez drones e aproximadamente 600 viaturas —entre motos, carros, bases comunitárias móveis e unidades especiais.
Na motociata, Bolsonaro usou capacete que é de uso terminantemente proibido em vias públicas segundo resolução 453/2013 do Conselho Nacional de Trânsito. A área de proteção lateral desse tipo de equipamento não atende aos requisitos de proteção estabelecidos pela resolução.
De acordo com o Código de Trânsito, em seu artigo 244, o não uso de capacete adequado é considerado infração gravíssima. A penalidade é multa e suspensão do direito de dirigir, e a medida administrativa prevista é recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo até a regularização.
Apesar da presença de diversas autoridades policiais e da CET no evento, Bolsonaro seguiu durante todo o trajeto com o capacete inadequado.
Além disso, vídeos mostram Bolsonaro dirigindo moto com a placa coberta, ação que é passível de ser enquadrada criminalmente. O Código Penal prevê pena de três a seis anos de reclusão para o crime de adulterar ou remarcar número de chassi ou qualquer sinal identificador de veículo automotor.
O ato, incentivado por Bolsonaro nos últimos dias em suas redes sociais, ocorre duas semanas após protestos contra o presidente, convocados pela esquerda, terem reunido milhares de pessoas em diferentes cidades do país.
A motociata ocorre também uma semana antes de um novo protesto desse grupos marcado para o próximo sábado (19). Bolsonaro até aqui tem minimizado o tamanho dos atos contra ele.
Na ocasião, liderados por centrais sindicais, movimentos sociais e partidos de esquerda, as manifestações contra Bolsonaro foram alvo de críticas por acontecerem presencialmente em meio à pandemia, num momento em que o país ultrapassava 450 mil mortes pela doença —e cerca de 2.000 em 24 horas.
Nas manifestações contra Bolsonaro, a recomendação para a utilização de máscaras teve ampla adesão de manifestantes, mas houve aglomerações em diversos locais, em descumprimento às regras de distanciamento social sugeridas por especialistas para conter a disseminação da Covid.
A promoção de aglomerações contraria as recomendações de médicos e especialistas para evitar a propagação do vírus. Em ambientes ao ar livre, a orientação é a de que as pessoas mantenham uma distância de pelo menos 1,5 metro.
Bolsonaro é alvo de dezenas de pedidos de impeachment, mas o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), afirmou no início deste mês que "não é uma caminhada de um grupo numa semana" que vai fazer com que um processo de impeachment avance na Casa. Cabe a Lira dar andamento a um dos mais de 110 pedidos em análise na Câmara dos Deputados.
A motociata anterior, em 23 de maio no Rio de Janeiro, foi a que provocou a mais recente crise militar no governo. Isso porque o ato político teve a participação de Eduardo Pazuello, general da ativa e ex-ministro da Saúde. Ele estava sem máscara e falou ao microfone, exaltando o presidente.
Dez dias depois, o comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, aceitou a pressão e a interferência de Bolsonaro e decidiu livrar Pazuello de qualquer punição por ter participado de um ato político do presidente.
A motociata saiu de Santana, seguiu pela marginal Tietê e continuou até o km 62 da rodovia dos Bandeirantes, fechada em todos os acessos à espera da passagem do presidente. No retorno, passou pela marginal Pinheiros, avenidas dos Bandeirantes e Rubem Berta, encerrando no obelisco do Ibirapuera.
Ao todo, segundo a Secretaria de Segurança Pública de SP, houve três incidentes envolvendo participantes do ato. Nenhum deles com gravidade. O primeiro caso foi um acidente no km 30 da rodovia dos Bandeirantes, em que o motociclista caiu e precisou ser atendido por uma ambulância.
Outro motociclista caiu da moto no km 16, mas como não teve gravidade, a pessoa se levantou e seguiu no evento. Uma terceira pessoa teve um mal súbito na marginal e foi atendida.
Segundo a AutoBAn, concessionária responsável pelo sistema Anhanguera-Bandeirantes, foram registrados 17 atendimentos de socorro mecânico, entre eles motocicletas com bateria descarregada e panes mecânico e elétrico.
O evento vinha sendo pensado há cerca de um mês com proporções bem mais modestas, organizado por um grupo de comerciantes e de igrejas evangélicas do estado.
Mas o ato cresceu muito desde que Bolsonaro confirmou participação, o que inclusive começou a incomodar alguns representantes de associações de motociclistas, que dizem que o evento foi “sequestrado” por líderes religiosos sem relação com o universo motoqueiro.
Em parte, a ideia era compensar o cancelamento presencial do maior evento evangélico do país, a Marcha Para Jesus, por causa da pandemia. A marcha costuma ocorrer no mês de junho.
O presidente tem no meio evangélico uma base de seguidores fiel, embora a última pesquisa Datafolha tenha apontado um empate técnico com o ex-presidente Lula (PT) no apoio dado por este segmento.
Mais recentemente, Bolsonaro passou a receber também o apoio de muitos motociclistas, que se organizam no Brasil em diversos clubes de aficionados pelas duas rodas. Grande parte deles associa o presidente, que é motociclista amador, à defesa da liberdade.
Bolsonaro também promoveu a redução do valor do seguro obrigatório e acenou com a isenção de pedágio em estradas federais para os motociclistas.
Médicos chineses alertam para piora rápida de infectados
Redação, O Estado de S.Paulo
PEQUIM - A Chinaestá enfrentando uma nova onda de infecções pelo coronavírus e, à medida que a variante Delta se espalha no sudeste do país, os médicos dizem que estão descobrindo que os sintomas são diferentes e mais perigosos do que aqueles que viram quando a versão inicial do vírus começou a se espalhar no final de 2019 na cidade central de Wuhan.
Os pacientes estão ficando mais doentes e suas condições estão piorando muito mais rapidamente, disseram os médicos à televisão estatal. Nos casos sintomáticos, as concentrações de vírus detectadas em seus corpos aumentam para níveis mais altos do que os vistos anteriormente e, em seguida, diminuem lentamente, disseram os médicos.
Até 12% dos pacientes ficam gravemente ou criticamente doentes dentro de três a quatro dias do início dos sintomas, disse Guan Xiangdong, diretor de medicina intensiva da Universidade Sun Yat-sen na cidade de Guangzhou, onde o surto foi centrado. No passado, a proporção era de 2% ou 3%, embora ocasionalmente chegasse a 10%, disse ele.
Médicos no Reino Unido e no Brasil relataram tendências semelhantes com as variantes que circularam nesses países, mas a gravidade dessas variantes ainda não foi confirmada.
Identificada pela primeira vez na Índia, a Delta se tornou a variante dominante no Reino Unido, onde os médicos sugerem que é mais contagioso e pode infectar algumas pessoas que receberam apenas uma das duas doses de uma vacina contra a covid-19.
A propagação da Delta no sudeste da China concentra a atenção na eficácia das vacinas chinesas. As autoridades não indicaram quantas das infecções com a variante ocorreram em pessoas que já foram vacinadas. Em alguns outros países onde as vacinas chinesas são amplamente utilizadas, incluindo Seychelles e Mongólia, as infecções entre as pessoas vacinadas estão aumentando, embora poucos pacientes tenham desenvolvido doenças graves.
A cidade de Shenzhen teve um punhado de casos na semana passada da variante Alpha, que surgiu pela primeira vez no Reino Unido.
Guangzhou isolou e colocou em quarentena dezenas de milhares de moradores que estiveram em qualquer lugar perto dos infectados. Os testes e a quarentena parecem ter reduzido, mas não impedido o surto. A Comissão Nacional de Saúde informou que nove novos casos foram encontrados em Guangzhou na quinta-feira. / NYT
Delivery - J. R. Guzzo, O Estado de S.Paulo
Talvez haja alguma explicação que esteja sendo mantida em sigilo. Talvez exista alguma verdade de ordem superior que ainda não esteja disponível para o cidadão comum. Mas, quando se faz uma lista das decisões que o Supremo Tribunal Federal toma em todos os casos nos quais a vítima é o erário – todos –, o único entendimento possível, pela lógica elementar, é o seguinte: a corrupção está oficialmente autorizada, no Brasil de hoje, para todos os efeitos práticos. Na lei continua sendo proibido roubar o Estado; não se pode levar para casa nem um apontador de lápis. Mas, quando se vê o que realmente acontece, na vida real, para os que são acusados de corrupção, fica claro que está valendo um “liberou geral”: não acontece nada, nunca, para ninguém. Não é uma opinião. É o que mostra a contabilidade fria das sentenças assinadas pelos 11 membros do tribunal.
Como chegar a alguma conclusão diferente quando se olha, com toda a boa vontade do mundo, para o que acaba de acontecer com o governador do Amazonas? O homem foi objeto, dias atrás, de uma operação de busca e apreensão, tanto em sua casa como no escritório, por suspeitas de ladroagem na gestão da covid. Eis aí uma pessoa-chave para ser ouvida na tal CPI que se diz encarregada de “investigar” tudo o que aconteceu a respeito do assunto, não é mesmo? Não, não é. A ministra Rosa Weber decidiu que o governador não precisa ir à CPI, para não passar por “constrangimentos”; ele pediu seu habeas corpus com a tranquilidade de quem pede uma pizza no delivery, e foi atendido com a mesma rapidez.
Como assim? Todo mundo que vai lá, e que está na lista negra do presidente, do relator e da esquerda nacional, tem sofrido os constrangimentos mais agressivos, desonestos e grosseiros já registrados na história das CPIs no Brasil. Por que estes podem ser massacrados em público e o governador do Amazonas não pode responder nem a uma perguntinha?
É incompreensível, pura e simplesmente – embora não haja nada de simples, e muito menos de puro, nessa história toda. Foi murmurado, aqui e ali, que havia problemas com a “independência de Poderes” – um governador, homem do Executivo, não podia ser interrogado pelos senadores, gente do Legislativo. É uma piada. O STF meteu na cadeia um deputado federal em pleno exercício do seu mandato, e ninguém falou em interferência nenhuma. Dia sim, dia não, o tribunal manda o presidente ou algum dos seus ministros fazerem alguma coisa em “cinco dias”, ou, às vezes, menos: explicar por que não usa máscara, resolver em três anos o problema das penitenciárias, informar o que o Exército está fazendo na Amazônia, e por aí afora. (Num dos seus melhores momentos, acaba de autorizar a disputa de um torneio de futebol.)
Falou-se, também, que o governador está sendo investigado pela polícia e, se fosse ouvido na CPI, corria o risco de incriminar a si próprio. Heimmm? Mas de que lado o sujeito está? Se ele não fez nada, e não tem nada a esconder, por que raios iria se incriminar? Bastaria dizer a verdade. A CPI é presidida por um senador do Amazonas – o lugar onde mais se roubou dinheiro da covid no Brasil, e possivelmente no mundo. Foi acusado de meter a mão na área da saúde, sua mulher foi presa pelo mesmo motivo e seus três irmãos também foram parar no xadrez. Se um cidadão assim pode ser o presidente da CPI, e ninguém está preocupado se ele vai se “incriminar”, qual é o problema com o governador?
Fala-se muito do ministro Gilmar Mendes, mas Rosa Weber é a mesma coisa; todos, no fundo, são a mesma coisa. Daqui a pouco a turma que precisa de habeas corpus nem vai mais mandar advogado ao STF. Vão resolver por telefone.
*JORNALISTA
O terceiro inverno do governo Bolsonaro
12 de junho de 2021 | 23h55
A cada início de inverno deste período de governo Bolsonaro venho publicando neste espaço textos voltados para o eventual leitor que preferiria não experimentar, em outubro de 2022, a polarização irrefletida que marcou a eleição de 2018 e julga ainda possível, desejável e salutar contribuir para tornar viável uma eventual coalizão ampliada de centro.
Como escreveu em texto recente Margareth Dalcomo, “aos cansados desses longos meses e que pretendem não se imiscuir nas querelas e desavenças políticas resta a lógica aristotélica, que lembra, aos que não gostam da política e permanecem neutros por convicção: somos e seremos sempre governados pelos que gostam e instados a arcar com as consequências dessa nada impune neutralidade”.
Há que levar em conta as sofridas memórias vividas por todos os brasileiros nos últimos dois anos e meio. Refiro-me não apenas à pandemia e à desastrosa postura do chefe do Executivo em relação a ela. É preciso que o País não perca sua memória – a memória do que alguns historiadores chamam do “passado recente”: aquele que continua influenciando o escopo das escolhas possíveis no presente.
Foram ações e omissões, erros e acertos, paixões e interesses, conflitos e compromissos que nos trouxeram, como país, ao que somos hoje. Entender como um país se tornou o que é, e o que poderia vir a ser, exige consciência do peso ou do empuxo do passado, como condição para viver criativamente no presente e, principalmente, para ter visão sobre o futuro, seu e de seu país no mundo.
O processo que nos trouxe até aqui está em curso há décadas. Estamos há mais de 130 anos em busca de uma República democrática digna desse nome. Por vezes, e particularmente agora, é preciso defender conquistas que julgávamos, realisticamente, em processo de consolidação.
O risco de retrocesso existe e vem se tornando menos obscuro ao longo dos últimos dois anos e meio. Acentuado pela propensão ao autoritarismo que vem marcando, a cada inverno que passa, a postura e a conduta daquele que deveria servir de exemplo a seus concidadãos – e não apenas àqueles que o têm como mito, como oráculo inquestionável.
Dizia o texto publicado aqui em junho de 2019 (início do primeiro inverno): “É difícil imaginar que possamos seguir com o grau de surpresas e incertezas que marcou os primeiros meses deste governo”. Por mais espantoso que pareça, elas se acentuaram nos 12 meses que se seguiram, com crescente atividade e influência do núcleo familiar e do núcleo ideológico do Palácio do Planalto nas redes sociais. No início do segundo inverno tentávamos ainda interpretar a escalada da estratégia bolsonarista, cada vez mais inspirada no sucesso de Trump nos EUA quanto ao uso, “como nunca antes no Brasil”, das redes sociais, crescentemente mobilizadas.
E desde então as incertezas, ansiedades e contradições só se acentuaram. A polarização acerba vem sendo a marca dos primeiros 18 meses do governo. Em 19 de abril de 2020 Bolsonaro discursou na manifestação de seus fiéis seguidores em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília, em meio a faixas pela restauração do AI-5 e contra o Congresso e o STF. Em fins de maio o País assistiu à íntegra do vídeo de uma surrealista reunião ministerial – a pandemia de covid-19 já fora declarada oficialmente pela OMS havia cerca de um mês e meio. Quem tinha dúvidas sobre o que era o presidencialismo de confrontação, à la Trump, deve tê-las perdido então. A partir daí, o instinto de sobrevivência política levou o presidente a fazer o que havia desprezado até então: tentar construir uma base de apoio no Congresso apta a permitir-lhe ganhar a reeleição em outubro de 2022.
Trump, o modelo de Bolsonaro, obteve em 2020 10 milhões de votos a mais do que havia obtido em 2016. Em belo artigo publicado neste jornal (23/11/20), Moisés Naim escreveu: “São 74 milhões que não se importaram em votar em um presidente que mente de forma compulsiva, constante e facilmente verificável. Que não acreditam que Trump seja mentiroso, ou não se importam com isso, ou têm necessidades e esperanças mais importantes”.
Mas o fato é que os eleitores norte-americanos decidiram, por uma diferença de 6 milhões de votos, não dar um segundo mandato a Trump. Que então se recusou a aceitar o resultado das urnas. Na verdade já declarava desde 2016, quando disputou pela primeira vez, que só reconheceria o resultado das urnas “if I win”. Em episódio inesquecível, insuflou seus seguidores a marchar contra o Congresso norte-americano. Era 6 de janeiro. A democracia norte-americana reagiu à invasão de seu Parlamento em plena sessão, e Biden tomou posse duas semanas depois.
A democracia venezuelana não resistiu a Chávez e Maduro. Há o risco de Bolsonaro ter em 2023 um quinto inverno. Seria o inverno de nossa desesperança, porque o Brasil teria dado em 2022 outro salto no escuro, como fez em 2018. Aqueles que desejam evitá-lo deveriam pensar na importância crucial dos próximos 12 a 15 meses. Para tanto muito ajudaria o uso da memória, que é, ou deveria ser, um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente.
ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC. E-MAIL: O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.
Maldição em dose dupla - Rolf Kuntz, O Estado de S.Paulo
Maldição sobre maldição pode parecer exagero, exceto num país sujeito ao desgoverno de Jair Bolsonaro. Se ele tiver sucesso em mais um desatino, a campanha para apressar o abandono da máscara, até o mísero avanço econômico estimado para 2022 estará em risco. Vacinação é hoje uma variável essencial em qualquer projeção econômica. É um tema citado nas primeiras linhas de qualquer estudo prospectivo do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional (FMI), de outras organizações multilaterais e, é claro, das instituições do mercado. Outras medidas preventivas, como o uso de máscara, também são mencionadas ou pressupostas como simples manifestações de bom senso. Mas nem o senso comum, menos brilhante que o bom senso, tem abrigo seguro no mundo bolsonariano.
A economia brasileira deve crescer 2,31% no próximo ano, segundo a pesquisa Focus, do Banco Central, de 4 de junho. Depois disso a expansão anual ficará em 2,5%, número familiar a quem segue as projeções de médio e de longo prazos. Mas até esse desempenho, muito modesto para um grande emergente, estará em risco se o coronavírus for de novo favorecido pela insensatez política. Mesmo sem referência à pandemia, no entanto, o crescimento mais forte estimado para 2021, cerca de 5%, some dos cálculos quando se trata dos anos seguintes. Pelas projeções, o vigor atual deve esgotar-se até o réveillon, sem deixar resíduos.
É como se a economia nacional estivesse sujeita a uma praga, uma espécie de maldição do ano seguinte ou dos anos seguintes. Surtos de crescimento mais vigoroso são acompanhados, nas projeções, de um rápido retorno à mediocridade, com taxas de expansão na faixa de 2% a 3%. Essa é a primeira praga, já experimentada há um bom tempo. A segunda maldição tem a marca bolsonariana.
Essa nova praga é uma combinação de políticas desumanas e desastrosas no front sanitário, de ações centradas nos interesses eleitorais e familiares do presidente e da negação do planejamento econômico. Não há definição de metas para modernização e crescimento, como se a economia real estivesse pouco presente nas pautas oficiais.
Não há sequer previsão de necessidades próximas. O projeto de Orçamento para este ano foi concluído, no final de agosto, como se fosse possível entrar em 2021 sem o auxílio emergencial e sem políticas anticrise. Tudo foi conduzido como se os problemas ligados à pandemia devessem desaparecer até 31 de dezembro. Além disso, nem mesmo se cuidou da tramitação da proposta orçamentária no prazo normal. A aprovação só ocorreu em abril, acompanhada de uma custosa confusão no manejo do dinheiro público.
Um governo preparado, sério e disposto a retomar o caminho do desenvolvimento teria cuidado, desde o início, de combater a maldição original. Bem conhecida há vários anos, essa maldição está associada ao baixo potencial de crescimento econômico do Brasil.
Investimento escasso em capital físico, educação deficiente, economia fechada, tributação disfuncional, insegurança jurídica, burocracia excessiva e finanças públicas engessadas são problemas conhecidos há muito tempo. São temas citados, há anos, em diagnósticos do Banco Mundial e do FMI, em relatórios de outras instituições multilaterais e na literatura econômica.
A maldição do ano seguinte, ou do baixo potencial, aparece claramente, por exemplo, numa tabela incluída num relatório do FMI publicado em julho de 2017. O documento, produzido no início da recuperação da crise de 2015-2016, apresenta num quadro as taxas de crescimento a partir de 2014 e indica as novas projeções: 0,3% em 2017, 1,3% em 2018 e 2% ao ano entre 2019 e 2022. Sim, a taxa de 2% aparece numa sequência de quatro anos.
Esse relatório trata da visita anual de um grupo técnico. É um trabalho regular de registro e de avaliação das condições e perspectivas de cada país-membro. O texto descreve o cenário depois da recessão, aponta uma recuperação muito moderada, registra o combate recente à inflação, menciona os desafios fiscais e cita o combate à corrupção. Também realça a importância do recém-criado teto de gastos e da esperada reforma da Previdência, assunto já avançado na gestão do presidente Michel Temer.
A maldição é visível também nas novas Perspectivas Econômicas Globais do Banco Mundial. O crescimento estimado para o Brasil em 2021 foi revisto de 3% para 4,5%, mas as previsões caem para 2,5% e 2,3% quando se trata dos dois anos seguintes.
Com vacinação atrasada e lenta, sem ação eficaz para conter os estragos da pandemia, sem planejamento e sem algo digno de ser chamado política econômica, a primeira maldição, a do baixo potencial produtivo, é agravada pela segunda praga, a do desgoverno e dos desatinos bolsonarianos. O presente seria, talvez, menos angustiante se todos pudessem seguir o conselho de Horácio a Leucônoe: desistir de saber o fim reservado a cada um pelos deuses, ter siso, desfrutar os vinhos e colher o dia de hoje, sem confiar no de amanhã. Mas o poeta Horácio parece ter pouca influência entre autores de projeções e leitores do boletim Focus. JORNALISTA