Fingindo de vivos - Rosângela Bittar, O Estado de S.Paulo
O PT, em plena pandemia, fez seu primeiro e inovador lance cibernético. Discretos, Lula e seus 111 companheiros do diretório nacional, por 12 horas, na véspera da Sexta-Feira da Paixão, ouviram e falaram com objetividade e disciplina.
Os ex-presidentes Lula e Dilma discursaram; o ex-candidato Fernando Haddad sintonizou-se; os governadores do Piauí, da Bahia e do Rio Grande do Norte transmitiram o consenso das gestões estaduais; prefeitos de Araraquara (SP) e São Leopoldo (RS) representaram os municípios; líderes na Câmara e no Senado, em nome das bancadas, contaram o estado da arte oposicionista no Congresso. Sempre dados ao excesso, foram concisos e disciplinados.
A reunião virtual do comando petista foi um sucesso surpreendente. Inovadora na forma, não se pode dizer o mesmo do conteúdo. Embora tenha mostrado um PT mais unido, ainda enraizado, bem articulado, a tese do renascimento apareceu ainda vestida por ranço antigo.
O que o PT vinha refletindo era sobre a urgência de abrir mão do protagonismo em nome da ampliação da aliança à esquerda e ao centro. O que decidiu foi reeleger como adversário o presidente Jair Bolsonaro, contrapondo-se a ele, para evitar o crescimento do centro na lacuna deixada pelo partido por tanto tempo.
Jair Bolsonaro, em plena pandemia e permanente campanha à reeleição, age, por sua vez, para transformar o PT em seu adversário eleitoral, e o faz combatendo os que podem abrir um caminho alternativo. Demonstram, com isso, inegável crescimento político do centro durante a pandemia.
Maiores ficaram os governadores, os prefeitos, os comandos da Câmara e do Senado, Judiciário, empresariado, organizações sociais, cientistas, médicos, universidades, organismos internacionais.
É contra esses inimigos que Bolsonaro sai por aí desdenhando da morte, brandindo sua espada, em comício a cada esquina, para um vírus invisível. Na mais histriônica encenação com a fantasia de médico, travestido às vezes de cientista, a profissão que abomina, o presidente da República escarnece da população aterrorizada.
É um vale-tudo. Faz a apologia de uma garrafada de feira – a cloroquina para o coronavírus, hoje, ainda é apenas isso –, toma quem acredita. Quem não acredita toma também, o que não tem remédio, remediado está. Mas sob controle e orientação abalizados. Que a inteligência proteja os que não podem tomá-la por seus efeitos colaterais, principalmente os arrítmicos, enquanto não chegam as conclusões das pesquisas.
Não foi Bolsonaro que a inventou, a droga está, desde o início, nos protocolos hospitalares, em um coquetel de fármacos que inclui antibióticos, antivirais, anticoagulantes e o que mais estiver à mão como armas de combate a inimigos desconhecidos, a exemplo do que a ciência fez com a aids. Só que sob um cerco de cuidados que Bolsonaro quer eliminar. O doutor presidente, pelo que se pode compreender, recomenda o produto como vacina, antes da doença, apressando o juízo final.
Bolsonaro está apostando no marketing da propriedade eleitoral da cura. Faz parte da mesma estratégia a escandalosa e desumana campanha contra o distanciamento social, mesmo que a pretexto de salvar empregos. Não importa se, para empregar-se, o trabalhador precise estar vivo.
Se os hospitais explodirem, azar. Azar do Brasil de chegar a um ano como este, a um momento como este, a um problema como este, com um presidente como este.
Ambos, Bolsonaro e PT, recrudescem a polarização para evitar que o centro, em crescimento evidente, os atropele. Jogam para daqui a três anos sem saber o que acontecerá daqui a três horas.
Mas já é possível prever que o voto antipetista não irá mais para Bolsonaro e o voto antibolsonaro não irá, necessariamente, para o PT. O mundo está se transformando e só as carolinas não veem.
Coronavirus sem politicagem - FERNÃO LARA MESQUITA
Muito além da cloroquina /VESPEIRO
Alexandre Fernandes, 44 anos, empresário de Joinville, esportista, não fumante, sem nenhuma “co-morbidade”, era um dos membros da comitiva de Jair Bolsonaro na fatídica viagem a Mar-A-Lago, o resort de Donald Trump em Palm Beach, Florida, no começo de março de que quase todos os participantes menos os presidentes brasileiro e americano voltaram contaminados pelo coronavirus.
Fernandes desembarcou no Brasil dia 11 de março, uma 4a feira, sentindo um certo excesso de cansaço, dor no corpo e um pouco de febre. Na 5a ligou para seu médico, o imunologista dr. Roberto Zeballos, passou no consultório em São Paulo e colheu material. Sábado já tinha o resultado: positivo para coronavirus.
Domingo começou a falta de ar. Fernandes baixou ao hospital Vila Nova Star para a primeira tomografia. O pulmão estava cheio de manchas. 20% comprometido. A saturação de oxigênio baixara a 85 quando o normal é em torno de 98. Além do cateter injetando 1 litro de oxigênio por minuto nas narinas, passou a ser tratado com remédios para baixar a febre e antibióticos para prevenir infecções oportunistas.
Segunda-Feira já não tinha forças para comer nem podia passar sem o cateter de oxigênio na dose de 2 litros por minuto. Na 3a já não tinha forças para ir até o banheiro sozinho. Na 4a passou a 4 litros de oxigênio por minuto. Na 5a o PCR, um indicador de imunologia que marca inflamação a partir do grau 4, chegara a 14 e o jovem saudabilíssimo de apenas seis dias antes não conseguia erguer o celular para … despedir-se da família.
“Senti minha vida indo embora”…
Fez a segunda tomo e a imagem que surgiu era sinistra. 80% do pulmão estava afetado. Foi para a UTI com os médicos discutindo a iminente entubação, momento a partir do qual a medicina praticamente se rende e tudo fica nas mãos de deus.
Mas ele escreve reto por linhas tortas.
Antes da decisão final o dr. Zeballos recorre ao dr. Marcelo Amato, pesquisador de renome internacional e um dos maiores pneumologistas do Brasil. Vários médicos consultados pelo Vespeiro reputam-no como “um cientista”. A sorte estava a favor de Alexandre. Amato acabara de ler um estudo do Hospital Jinyntan, de Wuhan, relatando 201 casos de pacientes com nível crítico de pneumonia relacionada ao coronavirus tratados com um novo esquema publicada apenas três dias antes no Journal of the American Medical Association (aqui). O que se relata ali é um tratamento controvertido que envolve uma espécie de “escolha de Sofia” da medicina. Mas o estado de Alexandre era crítico, a esposa dele também é médica e a proposta, embora contra-intuitiva, ia na direção de suspeitas compartilhadas por imunologistas com experiência no tratamento de quadros pulmonares semelhantes aos do coronavírus. E, agora, tinha o endosso de um dos maiores especialistas do Brasil. Todos os ingredientes necessários para uma decisão de risco como aquela estavam reunidos.
Quando falam em ciência, Bolsonaro saca o revólver
15 de abril de 2020 | 03h00
Nesta era da tecnologia, em que se combatem doenças com penicilina, vacinas e cirurgias corretivas de órgãos usando alta tecnologia cibernética, “homens da cobra” vendem mezinhas caseiras em feiras livres e praças. Não falta quem acredite nas lorotas de redes sociais (vulgo fake news) absurdas, como as que atribuem às vacinas doenças que evitam como se, ao contrário, levassem à morte. Pessoas cultas e respeitáveis adotam superstições – tais como não pronunciar a palavra câncer para evitar tumores malignos – com a naturalidade de quem toma água.
O capitão reformado do Exército Jair Bolsonaro representa no posto mais alto da República esse pelotão de inimigos figadais (a palavra é exata, porque se refere ao fígado, segundo a poetisa americana Elizabeth Bishop, o órgão que no brasileiro faz as vezes de cérebro) da ciência. A ala de seu governo que se diz ideológica segue, de fato, crendices pré-históricas do tempo do Mito da Caverna, de Platão, como lembrou seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Nele a humanidade vivia presa num buraco, privada da luz solar, vendo desenhos das chamas de uma fogueira na pedra. E disposta a matar a pedradas quem subisse à superfície e levasse a revelação do Sol no céu.
Bolsonaristas autênticos, que fizeram carreata no domingo 12 de abril na Avenida Paulista, interrompendo o trajeto das ambulâncias com doentes graves para os hospitais, berrando a plenos pulmões palavrões impublicáveis, acreditam que a Terra é plana na era das viagens espaciais. E, como criam os dignitários papistas que condenaram o Galileu Galilei do eppur si muove (no entanto, se move), imóvel. Idólatras, como os adoradores do bezerro de ouro, desafiando o decálogo do Deus do profeta Moisés no Sinai, amaldiçoam a evolução das espécies de Darwin, adotando o criacionismo do Gênesis. Hoje não dão a mínima para a Fiocruz e, então, pegariam em armas pela revolução contra a vacina da febre amarela, imposta por Oswaldo Cruz com apoio do presidente Rodrigues Alves, que morreria da pandemia da gripe espanhola no começo do século 20, ironia da deusa da História, Clio.
Jair Bolsonaro tem sido um Messias fiel nessa luta contra a ciência. Em março de 2016, enquanto o País debatia o impeachment de Dilma Rousseff, ele liderou o grupo de parlamentares – do qual faziam parte seu filho Eduardo e os petistas Arlindo Chinaglia (SP), médico e líder sindical, e Adelmo Carneiro Leão (MG), professor – em defesa da “pílula do câncer”. Esse foi o caso mais bem-sucedido de picaretagem de charlatão em prol da fosfoetanolamina, mezinha inventada pelo professor aposentado da USP Gilberto Chience (que não se perca pelo sobrenome). Em clima emocional e com celeridade inusitada, contrariando evidências científicas e assumindo o risco de levarem doentes terminais a abandonarem a quimioterapia e a radioterapia, a lei foi aprovada e sancionada por Dilma pouco antes de ser deposta. O Supremo Tribunal Federal (STF) ouviu os especialistas e proibiu a venda da droga. Mas o presidente ainda prega sua liberação, contra a qual o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, lutou na Câmara dos Deputados.
Nenhum defensor da “pílula do câncer” relatou algum caso concreto de cura pela panaceia do dr. Chience. Mas, quatro anos depois, o episódio se repete na batalha ideológica entre bolsonaristas e oponentes, como o governador de São Paulo, João Doria, defensores e inimigos da hidroxicloroquina e da cloroquina. O ridículo debate político foi aberto pelo presidente dos EUA, Donald Trump, em irresponsável, como tantas, fala na Casa Branca, em 19 de março. Desde então Bolsonaro é garoto-propaganda da droga, exibindo o produto vendido no Brasil em lives nas redes sociais. E isso provocou tal procura que pacientes que tratam de malária, artrite reumatoide e lúpus, e a tomam sob controle médico, não o acham nas farmácias.
O jornalista Edilson Martins, ex-Pasquim, já teve 26 surtos da febre terçã e contou em perfil no Facebook: “Confirmada a doença, vinha um funcionário da Sucam, nas cidades, diariamente, num jipe, e dava a dose do dia. Extremamente perigosa, a medicação. Sendo grávida, a mulher abortava. Não era concedida ao paciente a prerrogativa de ficar com as pílulas ... O diabo do plasmódio atacava, é o que diziam os médicos, principalmente o fígado, derretendo meu sangue, me tornando um amarelão só. Os que sobrevivem, não poucos, têm como consequência, entre outras, impotência sexual, cirrose, já destruída sua capacidade de filtro”.
Além do absurdo de transformar uma terapia não testada, como “a pílula do câncer” e a cloroquina, numa arma mortal de palanque eleitoral, sobrevive a evidência preocupante: eleito por uma grande maioria de brasileiros aptos a votar, terá Jair Bolsonaro permissão para exercer a medicina sem a formação acadêmica exigida em lei? E, o que é mais grave, parodiando o que o marqueteiro de Hitler, Josef Goebbels, dizia sobre a cultura para a área da medicina, ofício de salvar vidas, e imitando a arma com os dedos: “Quando me falam em ciência, saco meu revólver”.
JORNALISTA, POETA E ESCRITOR
A pandemia e o MPT - O ESTADO DE SP
Se no período imediatamente posterior ao da entrada em vigor da reforma trabalhista aprovada em 2017 o Ministério Público do Trabalho (MPT) atuou numa linha mais política do que técnica, opondo-se à modernização de uma legislação anacrônica herdada do Estado Novo varguista, agora, nestes tempos de pandemia do novo coronavírus, o órgão vem exercendo de modo exemplar as funções para as quais foi criado.
Desde o avanço da pandemia da covid-19, os procuradores do MPT já receberam quase 6 mil denúncias contra empresas em todo o País e abriram cerca de mil inquéritos civis. A maioria dos casos envolve denúncias de omissão dos empregadores em matéria de segurança do trabalho. Há, também, reclamações de carga excessiva de trabalho de funcionários colocados em home office e casos de trabalhadores contaminados que demoraram para ser afastados. As queixas são encaminhadas pelos próprios trabalhadores ou pelos sindicatos aos quais estão filiados. Há, ainda, casos que são comunicados de modo sigiloso por meio de um aplicativo.
Até o início de abril, os procuradores trabalhistas também já tinham impetrado 25 ações civis públicas. E, além de estarem participando de várias audiências de conciliação, estão sendo acolhidos seus pedidos de liminares que obrigam as empresas a fornecer álcool em gel, máscaras e luvas e a adotar programas de limpeza de ambientes e de distanciamento mínimo recomendado pelas autoridades sanitárias e de flexibilização da jornada de trabalho para evitar aglomerações.
Segundo dados do MPT, as denúncias abarcam todos os setores da economia e o maior número de reclamações vem do Estado do Rio de Janeiro. Em seguida, vêm os Estados de São Paulo e do Rio Grande do Sul. Ao receber as reclamações, os procuradores notificam as empresas pela internet e pedem que enviem informações no prazo de cinco dias. Com base nelas e apoio técnico dos Centros de Referência em Saúde dos Trabalhadores, vinculados ao Ministério da Saúde, o MPT faz recomendações às empresas, por videoconferência. E, dependendo da resposta, o caso é encerrado.
Uma das queixas mais importantes, seja pelos valores envolvidos, seja pelo número de trabalhadores, foi feita contra uma grande empresa que atua na exploração de zinco, cobre e chumbo no Estado de Mato Grosso. Depois que suas atividades foram suspensas por uma liminar pedida pelo MPT, ela se comprometeu a acatar as recomendações, beneficiando 1,5 mil funcionários. Há, também, reclamações contra dezenas de aplicativos de entrega em domicílio, cujos motoboys reivindicam mais equipamentos de proteção e ajuda financeira para os que foram afastados por suspeita de contaminação.
O mais surpreendente, contudo, é a desproporção entre o alto número de denúncias recebidas pelo MPT e o baixo número de ações judiciais. Esse é um fato positivo, revelando que os procuradores e os advogados das empresas têm dado preferência mais à negociação do que à litigância. Essa disposição ao diálogo decorre do ineditismo dos impasses surgidos nas relações trabalhistas por causa da pandemia do novo coronavírus.
Como os problemas são novos, as partes tiveram de aprender a lidar com eles. E como entre fevereiro e março vários textos legais foram aprovados com o objetivo de introduzir medidas de urgência na legislação trabalhista, os procuradores – a exemplo dos advogados trabalhistas – tiveram de estudar e avaliar as inovações. Enquanto as associações de advogados consultaram especialistas e passaram a distribuir circulares para seus associados, a cúpula do MPT editou uma série de notas técnicas para instruir seus membros sobre como agir. Além de prudente, o órgão primou pela responsabilidade – virtude que lhe faltou até recentemente, quando muitos procuradores, exorbitando de suas prerrogativas e agindo com motivação mais política do que jurídica, vinham tentando intervir em fusões e incorporações da iniciativa privada, sob pretexto de preservar empregos.
Excesso de generosidade 0 O ESTADO DE SP
O governo – e, por conseguinte, o País – continua a pagar caro pela opção do presidente Jair Bolsonaro de não fazer política. Sem articulação no Congresso, o presidente ainda se permitiu confrontar agressivamente os governadores, estratégia adotada desde antes de estourar a crise da covid-19 e substancialmente ampliada em meio à pandemia. Como resultado disso, viu, impotente, governadores e parlamentares se articularem na Câmara e aprovarem, por larga margem (431 votos a 70), um generoso projeto de lei para socorrer Estados e municípios.
Não há dúvida de que recai sobre os entes subnacionais o maior fardo da crise, já que estão na linha de frente do combate à pandemia. Não bastasse isso, esses entes já vinham enfrentando severas restrições de caixa, fruto de seguidas administrações perdulárias e da pasmaceira econômica. Ou seja, o novo coronavírus colheu Estados e municípios em seu pior momento, formando uma tempestade perfeita.
Cabia, então, à União ajudar os entes subnacionais a atravessar a tormenta. Já havia um projeto de socorro aos Estados em tramitação desde antes da crise, apelidado de Projeto Mansueto, em referência a seu autor, o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida. Nesse texto, os Estados sem capacidade de pagamento seriam autorizados a contrair até R$ 10 bilhões por ano em empréstimos com aval da União. A contrapartida seria a adoção de duros ajustes, como privatizações de companhias de saneamento, corte de benefícios fiscais e supressão de vantagens salariais para servidores.
O texto aprovado na segunda-feira pela Câmara eliminou a possibilidade de empréstimos, mas adotou outra forma de socorro: a União compensará Estados e municípios que sofrerem queda na arrecadação de ICMS estadual e ISS municipal entre abril e setembro, período em que se imagina que a pandemia comece a arrefecer. Caso se confirme a previsão de uma frustração de 30% dessas receitas, haverá uma compensação da ordem de R$ 80 bilhões. É o dobro do que o governo estava disposto a bancar, conforme proposta do ministro da Economia, Paulo Guedes. Haverá, ainda, a suspensão de dívidas com o BNDES e a Caixa, o que deve acrescentar R$ 9,6 bilhões ao pacote de socorro.
O pior de tudo é que o plano aprovado não prevê contrapartidas. Ou seja, os Estados e municípios não serão obrigados a cortar nenhum gasto com funcionalismo nem reduzir o tamanho da máquina para receber o dinheiro. Poderão manter intacta a estrutura que propiciou o colapso de suas contas e que, em grande medida, inviabilizou o funcionamento da máquina estatal.
Desse modo, o pacote é mais um incentivo para que muitos Estados e municípios, hoje praticamente falidos, mantenham seu comportamento imprudente. Numa situação normal – e numa gestão zelosa –, uma queda de arrecadação costuma ser seguida de medidas para cortar gastos excessivos, especialmente os que dizem respeito a privilégios inaceitáveis em qualquer circunstância. Com o pacote aprovado, os governos não terão com que se preocupar, já que a perda de arrecadação será bancada de qualquer maneira pela União.
Não à toa, os parlamentares consideram a compensação uma espécie de “seguro”. Já o ministro Paulo Guedes prefere chamá-la pelo nome real, “cheque em branco”. O projeto aprovado impede que a compensação sirva para ampliar benefícios fiscais ou para aumentar despesas que não tenham relação com o combate à pandemia. Mas esse limite não é garantia de nada, dada a notória criatividade esbanjadora de vários governadores e prefeitos, hábeis em transformar em permanentes despesas que deveriam ser provisórias e para incluir na conta da União – leia-se, dos contribuintes de todo o País – seus esqueletos fiscais.
Por isso, o governo quer que o projeto seja modificado no Senado, deixando explícito, por exemplo, que está proibido usar os recursos para conceder aumento salarial para o funcionalismo. Além disso, o ministro Paulo Guedes citou a possibilidade de veto presidencial. De um jeito ou de outro, o governo terá de trabalhar para evitar mais uma derrota. Um bom começo seria parar de tratar governadores e parlamentares como inimigos.
Mandetta admite erro e tenta sair do foco crise do coronavírus
Julia Lindner, Jussara Soares e Daniel Weterman, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, admitiu a auxiliares ter cometido um erro estratégico ao elevar o tom do embate com o presidente Jair Bolsonaro sobre a conduta do governo no enfrentamento ao novo coronavírus e deve submergir, nos próximos dias, para sair do foco da crise. Aliados de Bolsonaro, no entanto, veem com descrença a promessa do ministro de fazer uma espécie de “voto de silêncio” sobre suas divergências com o presidente.
Bolsonaro se reuniu nesta terça-feira, 14, no Palácio da Alvorada, com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que é do mesmo partido de Mandetta. Nos últimos dias, ele tem conversado com dirigentes de siglas do Centrão, que interpretaram o movimento como uma preparação de terreno para a saída do ministro da Saúde.
“O presidente já abriu esse diálogo e deve partir para a indicação de um técnico no ministério”, disse o senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO). “Enquanto Mandetta não sair ou for demitido, esses problemas vão continuar e Bolsonaro ficará mais desmoralizado”. Desde o início do mês, Bolsonaro já recebeu parlamentares e dirigentes do PP, PL e Republicanos e nesta quarta-feira, 15, deve conversar com o presidente do PSD, Gilberto Kassab. Todos os partidos compõem o Centrão.
Mandetta perdeu apoio de militares do governo – que viram em sua entrevista de domingo ao Fantástico, da TV Globo, um tom de provocação – e até de alguns aliados em secretarias estaduais da Saúde. Integrantes do ministério observaram que, embora esteja defendendo orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), Mandetta adotou tática errada ao falar em “dubiedade” na equipe sobre medidas para combater a pandemia.
Em entrevista ao Estadão Live Talks na manhã desta terça-feira, 14, o vice-presidente Hamilton Mourão criticou o ministro da Saúde, dizendo que ele “cruzou a linha da bola” quando disse na entrevista que a população não sabe se deve acreditar nele ou no presidente. “Ele fez uma falta. Merecia um cartão”, disse Mourão, afirmando que julga que “o presidente não deve mudar o ministro neste momento.”