O jeitinho brasileiro de fazer pedaladas fiscais
Como se criam as condições para um país inteiro despencar na maior recessão já registrada, combinada com inflação alta e total descontrole das contas públicas? Com muito jeitinho, na descrição dos jornalistas Claudia Safatle, Ribamar Oliveira (do jornal Valor Econômico) e João Borges (da GloboNews). No livro Anatomia de um desastre (Editora Portfolio Penguin, R$ 44,90), o trio explica como o governo Dilma Rousseff abusou de minúcias contábeis para esconder a trajetória temerária das contas públicas e, assim, flertou com o abismo. Leia abaixo um trecho inédito editado do livro. Nele, o repórter Ribamar Oliveira, do Valor, faz uma constatação parecida com a de dois auditores do Tribunal de Contas da União: que o atraso de pagamentos, no governo Dilma, era um sistema destinado a enganar o mercado e os cidadãos.
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“No início de janeiro de 2014, um dos autores deste livro, Ribamar Oliveira, repórter e colunista do Valor Econômico, recebeu informações do Contas Abertas (associação sem fins lucrativos que monitora contas públicas no país) de que o governo havia aumentado substancialmente o montante de restos a pagar que tinha deixado para 2014, de forma a melhorar o resultado primário de 2013. O economista Gil Castello Branco, do Contas Abertas, chamou a atenção também para a grande concentração de ordens bancárias para pagar investimentos emitidas pelo Tesouro no período de 28 a 31 de dezembro. Com esse expediente, argumentava Castello Branco, o dinheiro só havia saído do caixa do Tesouro no primeiro dia útil de 2014, o que inflara o superávit primário do ano anterior.
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Com base em dados preliminares do Contas Abertas, e depois de confirmar as informações com uma fonte oficial indicada pelo próprio Ministério da Fazenda, o jornal Valor Econômico publicou uma matéria mostrando que os restos a pagar tinham aumentado muito de 2013 para 2014. No dia seguinte, para surpresa de Ribamar e de Castello Branco, o secretário do Tesouro Nacional, Arno Augustin, desmentiu a reportagem, alegando que o crescimento dos restos a pagar tinha sido bem menor do que o divulgado pelo jornal. O Valorpublicou o desmentido de Arno.
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O repórter decidiu, então, ir atrás de novas provas de que o governo tinha adiado o pagamento de despesas com o objetivo de melhorar o resultado primário de 2013. O problema é que o jornal Valor Econômico não tinha acesso ao Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi). Mas Ribamar se lembrou de um curso sobre o sistema eletrônico que havia feito no começo dos anos 2000 com o professor e contador Paulo Henrique Feijó. Ribamar telefonou a seu ex-professor.
Há um ditado que diz que o melhor lugar para esconder uma árvore é na floresta. Para comprovar isso, basta tentar acessar os sistemas de dados que os governos colocam à disposição do cidadão na internet. As informações desejadas estão todas lá, só que os caminhos para chegar até elas são intransponíveis para a maioria dos mortais. Feijó guiou o repórter pelos meandros do Portal da Transparência, como se estivesse dando uma aula particular. E a resposta estava lá.
Como o sistema bancário fica fechado ao público no último dia do ano para balanço e só reabre no primeiro dia útil do ano seguinte, as ordens bancárias emitidas em 30 e 31 de dezembro por órgãos públicos, para pagamento de despesas, só serão sacadas da Conta Única do Tesouro no ano seguinte, normalmente no dia 2 de janeiro. ‘Emitir uma ordem bancária nos últimos dias do ano pode significar uma decisão de pedalar o gasto’, explicou Feijó. O jornalista nunca tinha ouvido o termo ‘pedalar’ nesse contexto.
‘Como assim?’, quis saber.
‘Na área técnica, a gente chama de pedalada a postergação de um pagamento de um mês para o outro ou de um ano para o outro’, explicou Feijó. ‘E claro que isso afeta o resultado fiscal do mês ou do ano.’ O termo remete à ideia de que, quando para de pedalar uma bicicleta, o ciclista cai.
Em sua edição de 23 de janeiro de 2014, o Valor Econômico publicou um artigo assinado por Ribamar intitulado ‘O ano com 13 meses’, no qual aparecia, pela primeira vez na imprensa brasileira, a palavra ‘pedalada’, que mais tarde ganharia notoriedade por estar na origem do impeachment da presidente Dilma Rousseff. O artigo informava, também pela primeira vez, que o pagamento da despesa com o Bolsa Família e com o seguro-desemprego tinha sido pedalado de 2013 para 2014.
Em junho de 2014, o jornalista leu uma notícia no site da Confederação Nacional de Municípios (CNM) sobre o atraso do repasse dos recursos dos royalties do petróleo e foi ao Portal da Transparência verificar se ele realmente tinha ocorrido. Ao mesmo tempo, questionou a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) sobre o assunto. ‘O Tesouro não considera que houve postergação nos repasses. As ordens de pagamento foram emitidas no mês em que a receita foi classificada’, informou a STN.
‘A que horas o pagamento foi realizado?’, quis saber o professor Feijó. Os dois acessaram novamente o Portal da Transparência, cada um de um lado da linha. Mais uma vez o repórter comprovou que a informação estava disponível a qualquer cidadão, embora os caminhos para chegar a ela fossem quase impossíveis de ser percorridos sem a ajuda de um especialista. O Portal registrava que as ordens bancárias tinham sido emitidas às 17h13 e às 17h33 do último dia do mês de abril. ‘O manual do Siafi diz que só são debitadas no mesmo dia as ordens bancárias emitidas até as 17h10’, explicou Feijó.
Os pagamentos feitos pelo Tesouro depois das 17h10 do último dia útil de cada mês também chamaram a atenção do auditor Antônio Carlos d’Ávila, do Tribunal de Contas da União (TCU). Ele fez uma representação, sugerindo investigação, ao ministro José Múcio, do TCU, responsável na época pelas áreas do Ministério da Fazenda, Banco Central e Secretaria do Tesouro. A representação de D’Ávila coincidiu com outra, redigida pelo procurador do Ministério Público junto ao TCU, Júlio Marcelo de Oliveira.
Em depoimento no plenário do Senado, como testemunha de acusação no processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, D’Ávila informou aos senadores que tinha ajudado a redigir a representação feita por Júlio Marcelo. O procurador se baseou nas denúncias de jornais e revistas sobre o atraso dos repasses do Tesouro aos bancos públicos, particularmente à Caixa Econômica Federal, para pagar os benefícios do Bolsa Família, do abono salarial, do seguro-desemprego e dos subsídios do crédito agrícola. José Múcio juntou as duas representações e determinou que a Secretaria de Controle Externo investigasse as denúncias. As investigações ficaram a cargo de apenas dois auditores: Antônio Carlos d’Ávila e Charles Santana de Castro.
Em 1983, com 14 anos, cabia a D’Ávila preparar o café dos funcionários da agência do Banco do Brasil de Cambé, pequena cidade a apenas 13 quilômetros de Londrina, no Paraná, onde ele havia nascido. D’Ávila havia passado a infância em Niterói, no Rio de Janeiro, e retornado a sua cidade natal com 12 anos. Tornou-se escriturário do Banco do Brasil com 18 anos, depois de prestar concurso interno. Em 2004, D’Ávila passou em um concurso do TCU e foi trabalhar na Secretaria de Macroavaliação Governamental, que assessora o ministro relator na análise anual das contas do presidente da República.
A família de Charles Santana de Castro, o outro auditor responsável pela investigação das pedaladas, chegou a Brasília vinda da cidade de Imperatriz, no Maranhão, quando ele tinha apenas 2 anos. O pai conseguiu emprego como vigia noturno na Fundação Educacional do Distrito Federal e a mãe como cabeleireira. A família foi morar em Ceilândia, na época uma das cidades-satélites mais carentes de Brasília. Charles e os quatro irmãos estudaram em escolas públicas. O futuro auditor do TCU começou a trabalhar com 15 anos, como office boy do Hospital Santa Lúcia, um dos maiores da cidade. Foi depois garçom, balconista e motorista de táxi. O que ele ganhava como taxista mal dava para pagar o aluguel e a gasolina do carro. Charles resolveu, então, ingressar na carreira militar como fuzileiro naval. Também não se adaptou. Deu baixa, se tornou policial militar e, em seguida, foi para a Polícia Rodoviária Federal, onde permaneceu por oito anos. Com 32 anos, decidiu fazer um curso superior e ingressou em uma universidade particular, a Unieuro, no curso de ciências contábeis. Estudava à noite e trabalhava durante o dia. Ao concluir os estudos, em 2009, passou em primeiro lugar no concurso para analista de controle interno do Ministério Público da União. Ingressar no TCU, também por concurso, seria o passo seguinte de Charles.
A profusão de dados que os dois auditores foram levantando não desviou a atenção deles. No momento em que começaram a perceber que tinha ocorrido atraso na transferência de recursos do Tesouro para os bancos públicos, de imediato fizeram a correlação com operações de crédito indevidas, vedadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Antes mesmo de 26 de outubro de 2014, quando foi realizado o segundo turno da eleição presidencial, D’Ávila e Charles já sabiam que o governo de Dilma Rousseff tinha cometido crime fiscal. Mas os dois procuraram manter as investigações dentro do maior sigilo, pois não queriam que as irregularidades apuradas provocassem qualquer interferência no pleito de 2014.
Ao ser ouvido como testemunha pela Comissão do Impeachment do Senado em 8 de junho de 2016, Antônio d’Ávila relatou o que sentiu à medida que foi constatando que o governo realmente tinha praticado pedaladas fiscais e cometido outras irregularidades. ‘Ao longo da auditoria, eu não acreditava nos achados que eu estava encontrando. Eu não acreditava que estava diante daquela situação, de tal sorte que, ao receber o contraditório, os argumentos da outra parte, me dava um frio na barriga tão grande porque eu falava: Não é possível, eu devo estar errado. Eu devo ter cometido alguma falha no processo.’ O relatório dos dois auditores sobre a investigação foi concluído no dia 12 de dezembro de 2014. Nele, os servidores do TCU afirmaram que o governo realizou operações irregulares de crédito, proibidas pela LRF, ao atrasar o repasse de recursos aos bancos públicos.
As irregularidades apuradas na investigação das pedaladas fiscais também levaram o TCU a rejeitar as contas da presidente Dilma relativas a 2014. O acórdão do plenário do TCU citou, inicialmente, 17 autoridades como responsáveis pelas pedaladas fiscais. A repetição das pedaladas em 2015 e de decretos de créditos suplementares ao Orçamento, em desacordo com a meta fiscal estabelecida em lei, esteve na base do pedido de impeachment da presidente.”
Trecho inédito editado do livro Anatomia de um desastre, de Claudia Safatle, João Borges e Ribamar Oliveira / ÉPOCA